Aracaju/Se,

sexta-feira, 5 de julho de 2019

O perfume de Mamede

Opinião pessoal


O Perfume de Mamede
Clóvis Barbosa
Resultado de imagem para mamede paes mendonça 
Certo dia, contava a um colega sobre a origem do meu gosto pelo perfume Kouros. Ele ficou fascinado com a narrativa das lembranças de minha infância, mais especificamente dos meus doze anos. Disse-me que o que eu narrava casava perfeitamente com um texto que havia lido do escritor Antônio Carlos Viana, onde ele, citando Truffaut, falava que “se você acha que sua fonte de inspiração secou, visite seus doze anos e todo um manancial de lembranças correrá por sua memória”. E Viana completa, rememorando como o cheiro de um café, em determinado dia, lhe transportou para uma época distante. Antônio Carlos Viana é um dos orgulhos de Sergipe. Desponta, hoje, ao lado do escritor Francisco Dantas, como um dos nomes mais brilhantes da literatura brasileira. E o que é melhor, Viana e Dantas moram e vivem em Sergipe. Do primeiro, recomendo a leitura de “Brincar de Manja” e “Jeito de Matar lagartas”, este vencedor do prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte. Já de Dantas, “Coivara da Memória”, “Os Desvalidos” e “Caderno de Ruminações”. Já prestei a Dantas, aqui no Jornal da Cidade, uma homenagem, ao escrever “Um sergipano Paraty”, quando tive a emoção de conhecê-lo na X Festa Literária Internacional de Paraty, em 2012: “É... Diz a lenda que Deus começou a distribuir terras pelo mundo. A certa altura, d’Ele se acercou Pedro, reclamando seu quinhão. – É lá, disse o Senhor – aquilo é Paraty! Pois foi nesta bela cidade fluminense, de um mar lindo com as suas dezenas e dezenas de ilhas, prédios coloniais e povo acolhedor, que o valor de uma gente foi reconhecido através de uma alma tímida, simples e extremamente inteligente: Francisco. Um Francisco que não se esquece. Eternamente vivo na coivara da memória”.
 Resultado de imagem para françois truffaut
François Truffaut
Como estou falando de lembranças, olha os doze anos de volta: François Truffaut, em “Os Incompreendidos”, filme que assisti no ART, um cineminha situado na Rua da Ajuda, Centro de Salvador. Truffaut era um dos ícones da minha infância, no tempo em que sonhava ser um diretor de cinema. Ele fazia parte do movimento cinematográfico chamado de “Nouvelle Vague”, ou Nova Onda, cuja principal característica era a de transgredir as regras comumente usadas no cinema comercial. Um cinema inteligente, explorando as contradições da natureza humana e suas vicissitudes. O amor e as relações humanas passavam a ter uma nova forma de retratação. Ele inspirou monstros sagrados da cinematografia mundial, como Steven Spielberg, Brian de Palma, Martin Scorcese, Quentin Tarantino e tantos outros. Dele, vi, ainda, “Jules et Jim”, “O Homem que Amava as Mulheres”, “A Mulher do Lado” e “Fahrenheit 451”.  Os temas mais explorados no cinema de Truffaut foram, exatamente, as mulheres, a paixão e a infância, daí sua idolatria pelas lembranças que colavam na memória como uma cicatriz. E ele tinha razão. Com a morte de minha avó Júlia Modesto, com a qual vivi desde os dois anos de idade, no começo dos anos 60, fui morar com meus pais na Rua Sete de Abril, em um morro situado entre o Largo do Tanque e a Liberdade. Tinha onze ou 12 anos. Família grande, eu era o quinto filho de uma prole de treze irmãos, mas ao todo foram vinte e quatro. Meu pai estava passando por uma fase difícil. Tinha falido e, de patrão, passou a ser empregado como garçom em um restaurante situado na Cidade Baixa. Minha mãe costurava, mas o ganho para manter a família era bastante escasso, de maneira que os mais velhos precisavam trabalhar para ajudar nas despesas da casa.
 Resultado de imagem para ruELAS DE SALVADOR
Ruelas do Centro de Salvador
Desde os dez anos, ainda na casa da minha avó, estudava e vivia também da venda e troca de gibis (histórias em quadrinhos), fazendo ponto nos sábados à tarde no cinema Santo Antônio, centro histórico de Salvador. Mas tinha que ter um trabalho fixo. Comecei a acompanhar minha mãe em lojas, bancos e tudo que era estabelecimento comercial. Certo dia, com várias promessas de emprego, ela me disse: - Conheci lá em Irmã Dulce um sergipano muito rico, dono de mercado de luxo que vende de tudo, de farinha a pneu de caminhão. Entregou-me uma espécie de cartão, onde estava escrito Mamede Paes Mendonça, Diretor-Presidente da Pague menos, ou Paes Mendonça S/A, mais ou menos isso. Abaixo do nome e do cargo, o endereço na Cidade Baixa, perto do Mercado do Ouro. Conhecia de nome o sergipano. Na época eu gostava de ler os jornais A Tarde, Jornal da Bahia e Tribuna da Bahia, e acompanhava o noticiário pela Rádio Sociedade da Bahia. – Marquei com ele sexta-feira, às 10 horas. Vista a sua melhor roupa, nada de rir da gagueira dele e responda tudo que ele perguntar. Ele vai lhe dar um emprego!, disse minha mãe. Sexta-feira, pontualmente, estávamos na porta do escritório de Paes Mendonça. Sua secretária nos recebeu e ficamos aguardando a chamada para a entrevista. Fiquei inebriado com o cheiro que vinha de dentro do escritório de Paes Mendonça, quando, de repente, ele abriu a porta e mandou que entrássemos. – Doooona Helelelena, é este pipirralho que a Senhooooora quequer queque trababalhe? Bom, enquanto ele conversava com minha mãe, eu estava impressionado com a fragrância que circundava todo o escritório. Nunca tinha sentido nada igual. Comecei a vivenciar aquele momento inalando com prazer todo aquele olor.
 Resultado de imagem para perfume kouros
O aroma era uma mistura de flores, sei lá... rosas, jasmins, alguma madeira, frutos, enfim, fiquei inerte diante daquele ambiente maravilhoso. A minha experiência com perfume era, no máximo, a água de cheiro, comprada na Feira de Água de Meninos ou no Mercado Modelo; o lança-perfume, um produto de rico vendido no período de carnaval; algumas colônias vendidas em farmácia, sabonetes e pronto. Saí da minha inércia com o grito de minha mãe para que eu desse atenção ao nosso anfitrião. Era um homem bonito, cara de italiano e estava de sandálias. Ele me achou muito jovem para o trabalho, não pela idade, mas pela minha magreza e palidez. Respondi às suas perguntas laconicamente. Sobre os meus gostos: – Cinema, futebol, estudo e jornal. O que eu sabia fazer: - Tudo, basta me ensinar. Mas eu estava mesmo era embasbacado com a fragrância que tomava conta do escritório. – Que cheiro gostoso, dizia para mim mesmo. Ele conversou um pouco com minha mãe e disse que iria ver o que era possível fazer. Mandou que eu voltasse no início do mês subsequente. Ao sair, perguntei a minha mãe se ela percebeu o aroma que exalava pelo escritório. Ela disse que era coisa de rico, de francês, que não gostava de tomar banho: - Francês é assim! Não sabe cozinhar, aí inventou o molho. Não toma banho, aí inventou o perfume pra esconder o fedor do corpo. Não trabalhei com Mamede. Antes do fim daquele mês, fui chamado para iniciar as minhas atividades em uma loja da Baixa dos Sapateiros, chamada Plaza Modas, de propriedade do polonês Samuel Leizor Joscovitz. Só voltei a ver pessoalmente Seu Mamede na metade da década de 80, na inauguração de um dos seus supermercados.
Resultado de imagem para shopping ibirapuera sp
Shopping Ibirapuera SP 
Neste dia, já advogado, fui apresentado a ele por um amigo de muita estima, Antônio Barbosa, que trabalhava no grupo GBarbosa. Quando ele apertou minha mão e me abraçou, foi logo falando: - Bobom gosto o senhor tetem. Uuuusa Kouros, o meu perfume. Não deu para falar mais nada. A partir deste momento um filme passou pela minha cabeça. Lembrei-me do contato que tive com ele e da experiência de sentir, pela primeira vez, a fragrância inebriante do perfume do seu escritório; e de depois, quando voltei a sentir a mesma sensação dois ou três anos antes desse encontro, em um shopping em São Paulo. Tinha ido à capital paulista participar de um congresso de direito do trabalho. Em dado momento, um colega advogado me convidou para ir a um shopping em Ibirapuera, onde ele iria visitar a irmã, que trabalhava em uma de suas lojas. No centro de compras, ao passar por uma loja de perfumes, uma atendente me presenteou com uma amostra em um cartão. Ao cheirar, parei, fiquei pasmo, entorpecido. Era o mesmo aroma agradável de vinte e poucos anos atrás, quando da minha visita ao escritório de Mamede Paes Mendonça. A lembrança estava presente com toda a sua força. Voltei e perguntei à atendente o nome do perfume. - Kouros, ela me respondeu. Comprei dois frascos de 100ml e, a partir daí, nunca mais deixei de usar o produto. Quando li a respeito do perfume, fiquei um pouco perturbado: Kouros foi criado em 1981. Mas como, se na década de sessenta eu conheci e senti aquele mesmo aromático? Será que a sua fórmula foi comprada pelo seu novo fabricante, que mudou o seu nome? Fui traído pelo tempo ou enganado nas sensações olfativas? Embora a dúvida pairasse em minha mente, não me interessei em buscar mais informações.
 Resultado de imagem para mam,ede paes mendonça
Mamede Paes Mendonça
Ficou na minha lembrança a figura daquele homem que venceu na Bahia e que era uma figura muito querida. Emocionou-me uma reportagem sobre o seu centenário de nascimento, em 2015. Estava ali estampada: “Duas décadas depois de sua morte, tudo permanece como ele deixou. O ritual é uma homenagem. Em meio a tantas lembranças, tudo é tão real que não sobra espaço para a morbidez. Preservar o acervo pessoal foi a maneira que a família encontrou de manter viva a memória do homem simples e de pouco estudo que, graças a sua habilidade para os negócios, transformou-se, ainda em vida, numa das maiores referências empresariais do setor varejista brasileiro. Depois de morto, virou mito. ‘É como se ele permanecesse entre nós. Todos os dias, ligamos o ar e borrifamos o perfume na sala que ele usava para senti-lo vivo’", explica José Augusto Andrade Mendonça, 70, o quarto dos seis filhos do sergipano.
Resultado de imagem para saudade
Para a família, borrifar o perfume usado por Mamede o traz de volta. Para mim, essa mesma fragrância tem “cheiro” de infância, da bucólica Salvador, das suas ladeiras, ruelas e de um povo que irradiava alegria. É cheiro daquilo que não se lembra todo dia, mas que o coração sente. A final, não se tira da cabeça aquilo que está no coração.

- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de 11 de junho de 2016, Caderno A-7.
- Postado no Blog Primeira Mão, em 12 de junho de 2016, às 08:30, site:






Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...