domingo, 15 de setembro de 2019
A Cultura do Golpe
A Cultura do Golpe
Clóvis Barbosa
O impeachment contra a presidente Dilma
Rousseff causou um reboliço impressionante no mundo político brasileiro. Primeiro,
a intolerância odiosa entre os grupos pró e contra o governo e o PT, o partido
da presidente; segundo, a patente ignorância histórica de um povo que se
esqueceu de ler, de conhecer a sua história e de adorar colocar embaixo do
tapete as suas angústias, anomalias e psicopatias. Somos um povo que não tem
tradição democrática. Temos medo de mudar. Quando falamos em mudança é para
continuar tudo como está. Adoramos uma benesse
vinda do erário, a viver à custa do dinheiro de todos, e por ser de todos, não
é de ninguém. Neste momento histórico, nunca se viu tanto gangsterismo,
oportunismo e falta de amor ao Brasil e ao seu povo. Uma voz, apenas uma voz,
não se ouviu em defesa da normalidade política e econômica. O povo que se lixe!
Uma alcateia de homens sujos tomou conta do país, fazendo da corrupção a regra
de comportamento.
O corrupto é sumamente perigoso. Ele não
conhece a fraternidade ou a amizade, mas só a cumplicidade, como disse o Papa
Francisco, onde, para ele, a corrupção é proselitista, se disfarça de
comportamento aceitável, como Pilatos, que faz de conta que o problema não é
com ele, e por isso lava as mãos, mesmo que no fundo seja para defender a sua
zona corrupta de adesão ao poder a qualquer preço. Alguém já disse que "a desgraça dos que não se interessam
por política é serem governados pelos que se interessam". O nosso ministro
Carlos Ayres de Britto, diz que a nossa história é ruinzinha; o nosso DNA
coletivo não é dos melhores. Enquanto nos Estados Unidos a sociedade civil
chegou antes do Estado, aqui, no Brasil, o Estado chegou antes da sociedade
civil. Somos sequelados política e juridicamente por causa desta chegada do
Estado em primeiro lugar, assumindo a estrutura de todo o processo colonizador
e civilizatório.
Temos
resquício de um Estado imperial, como a prepotência, a arrogância e a confusão
entre tomar posse no cargo e tomar posse do cargo. Por que o Brasil não
deslancha, sob os aspectos éticos? Por que o Brasil ainda não deu certo?
Perguntas já registradas por vários autores da literatura sociológica e
antropológica. Para explicar o porquê do Brasil não deslanchar, sob os aspectos
éticos, são inúmeras as obras escritas por cientistas políticos e sociais. Destaco
algumas delas: Caio Prado Júnior (Formação
do Brasil Contemporâneo), Darcy Ribeiro (O Povo Brasileiro – A Formação e o Sentido do Brasil), Moreira
Leite (O Caráter Nacional Brasileiro – A
História de uma Ideologia), Victor Nunes Leal (Coronelismo, Enxada e Voto), Josué de Castro (Geografia da Fome), Raymundo Faoro (Os Donos do Poder), Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil) e Nelson Werneck Sodré (Introdução à Revolução Brasileira). Por que o Brasil ainda não deu
certo?
Era a
pergunta que Darcy Ribeiro, um dos homens mais extraordinários que tive a honra
de conhecer, fazia ao chegar ao exílio, no Uruguai, em abril de 1964. Com essa
ideia na cabeça começou a pensar numa forma de responder à pergunta. Trinta
anos depois produziu, talvez, a sua maior obra, que tomou o título de “O povo
brasileiro – a formação e o sentido do Brasil”, que, para ele, foi a forma que
encontrou para influenciar as pessoas que aspiram a ajudar o Brasil a se
encontrar. Mas, infelizmente, a sua pergunta continua sem resposta? Único país
de colonização portuguesa em todo o continente americano, com uma área de 8
milhões e 500 mil quilômetros quadrados, o Brasil ocupa quase a metade da
América do Sul. Tem a sua população formada por três raças básicas: o negro, o
índio e o europeu. Os portugueses mandaram uma mistura do lusitano, do romano,
árabe e negro. Os negros foram trazidos da África como escravos, entre o século
XVI até meados do século XIX, sendo o país considerado o mais escravocrata do
mundo.
Já os
indígenas pertencem ao chamado grupo de paleoameríndios, cujo estágio, quando
da descoberta, era o neolítico, ou seja, o da pedra polida. Mais tarde, vieram
os italianos, espanhóis, alemães, eslavos, japoneses, chineses e sírios, além
de imigrantes de outros países em menor escala. Descoberto no início do século
XVI (1500), o Brasil foi colônia de Portugal durante três séculos, exatos 322
anos (1500 a
1822). Durante 77 anos (1822
a 1899), embora independente, viveu sob a forma
monárquica, governada por Dom Pedro I e II. De 1899 a 1930, exatos 31 anos,
já sob a forma republicana, no período cognominado de Primeira República. Foi
uma etapa da vida brasileira muito tumultuada, onde as forças dominantes, civis
e militares, eram bastante heterogêneas e onde a cultura do golpe campeava. Veio,
em seguida, a Segunda República, de 1930 a 1937, com o cargo sendo ocupado por
Getúlio Vargas após a renúncia imposta ao Presidente Washington Luís, com a
interferência do cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Sebastião Leme.
Foi uma fase
bastante conturbada da vida brasileira, dominada pelo extremismo de direita e
de esquerda que se polarizavam influenciados pelos acontecimentos que ocorriam
na Europa, com o nazismo, fascismo e comunismo. Redundou tudo isso numa das
ditaduras mais violentas das Américas, de 1937 a 1945, o chamado
Estado Novo, onde, depois de 7 anos no poder, Getúlio Vargas abiscoitava mais oito
anos como o ditador que mais vivenciou o poder no Brasil, em exatos 15 anos.
Veio a redemocratização em 1945 e que permaneceu até 1964, durando 19 anos.
Mais uma vez o Brasil não encontrou o seu caminho. Golpes e contragolpes eram
tramados diuturnamente, sendo a fase mais radical das facções políticas
existentes. Getúlio, Kubistchek, Jânio e Jango tiveram dificuldades em assumir
o cargo de presidente, apesar de terem sido eleitos pelo povo. Veio a ditadura militar, de 1964 a 1985, vivendo 21 anos
entre nós. Mais uma vez o Brasil parava no tempo e no espaço, sem vivenciar o
estado de direito democrático.
A
normalização institucional só veio a partir de 1985 com a sua redemocratização.
Somos, como se vê, ainda imberbes em democracia. Não sei se essa influência
histórica tenha contribuído com essa nossa formação arrogante. A democracia
perfeita é aquela que beneficia os nossos interesses egoísticos. O diálogo não
é o instrumento de convencimento, mas o de imposição. E quando o nosso
interesse se confronta com o do Estado, aí é que a coisa se transforma em pandemônio. Para
nós o Estado não se estabelece para atingir o bem comum, mas o nosso. É a
chamada viúva que não tem marido, e que todos se acham no direito de
usufruí-la, ou como diz Chico Buarque, que dorme tão distraída, sem perceber
que é subtraída vergonhosamente em inúmeras e intermináveis tenebrosas
transações. É também assim com o Estado na relação com todos nós. Esquecem os
mentecaptos, ou não querem saber, que o Estado somos todos nós.
A tática
das corporações de servidores públicos no estabelecimento de seus pleitos, por
exemplo, sempre norteados por aumentos salariais, é de estarrecer qualquer
perspectiva de civilidade e de seriedade na condução da coisa pública. Uma
corporação ameaça investigar gestores ligados ao Poder Executivo; outro,
manipula a classe e mente para a sociedade de que não está recebendo
determinado reajuste, mas nunca recorre à Justiça para ver reconhecido o seu
suposto direito. Aquele outro vive de processar os próprios órgãos que deveria
defender. Ameaçam as instituições, os seus dirigentes, a ordem democrática,
estimulam a criminalidade quando deveriam controlá-la, a morte nos hospitais
quando têm a obrigação de evitá-la, enfim, o caos é instaurado. Repentinamente,
a mentira, a peta, o logro, a corrupção, passam a ser regra. A decência, o respeito
aos recursos públicos, à democracia e ao contribuinte, a exceção.
Por outro
lado, os políticos que gerem a máquina pública fazem de conta que o assunto não
é com eles, até porque, carreiristas como são, não pretendem prejudicar o seu
caminhar na busca de novos postos. É estabelecido, pois, um pacto de
mediocridade entre esses atores da vida pública. Raymundo Faoro, na sua obra,
“Os donos do poder”, aborda as relações de poder sobre duas óticas, uma de
natureza do estamento, outra de ordem patrimonialista. Para ele, acima das
classes sociais e do interesse público, está o estamento burocrático que se
apropria da coisa pública a fim de sustentar os seus privilégios. A verdade é
que é preciso mudar urgentemente esse modelo que não deu certo em lugar nenhum,
nem no comunismo. Não se pode pagar salários iguais a desiguais. Não se pode
pagar o mesmo salário a quem trabalha e a quem nada produz, a não ser, como na
fábula de Ludwig Bechestein, você também acredite no burro que espirrava
dinheiro.
Ludwig Bechestein
Aliás, quando ele publicou O burro que espirrava dinheiro, ele supôs que apenas as crianças
acreditariam na estória. Afinal de contas, seu papel era entreter os jovens
leitores. Passados cento e cinquenta anos da sua morte, é possível ver que
alguns adultos, mais burros do que o burro da fábula, acham que é possível espirrar
dinheiro. A cultura do golpe está impregnada no DNA de grupos elitistas que
pensam o Estado como se fosse propriedade de alguns em detrimento da esmagadora
maioria. É preciso entender, como referido na obra “Ensaio sobre a Dádiva”, de
Marcel Mauss, que os dons devem ser compartilhados entre os integrantes de uma
sociedade, ou seja, dinheiro, comemorações, víveres – tudo aquilo que a
sociedade adquire e acumula – deve ser repartido entre os seus membros, sob
pena de esfacelamento das instituições. Um acontecimento marcante da nossa
história: nos anos que antecederam o suicídio de Vargas, em 1954, forças
golpistas lideradas por Carlos Lacerda tocaram fogo na administração getulista.
No dia 23 de agosto de 1954, o Brasil estava
endoidecido de ódio a Getúlio; no dia do suicídio, 24 de agosto, o mesmo povo
estava enlouquecido de paixão e saudade.
- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de 6 de agosto de 2016, Caderno A-6
-
Postada no Blog Primeira Mão,
Aracaju-SE, em 7 de agosto de 2016, às 17:12:23, site: http://www.primeiramao.blog.br/post.aspx?id=11200&t=a-cultura-da-mediocridade
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