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terça-feira, 5 de novembro de 2019

Freud e o Desenvolvimento Humano

Opinião 
Freud e o desenvolvimento humano

Clóvis Barbosa

Em 2010 foi lançado em Paris um livro que causou a maior polêmica. Tratava-se de uma obra de Michel Onfray, doutor em filosofia, defensor do hedonismo, do ateísmo e da anarquia, autor de mais de 40 livros publicados. Le Crépuscule d’une Ídolo – L’affabulation Freudienne é tida como um morteiro de alto calibre direcionado à vida e obra freudiana. Após passar o sarrafo na psicanálise, acusando-a de ser uma ciência nazista e fascista, entra na vida pessoal de Freud, acusando-o de se apropriar de textos de Schopenhauer e Nietzsche, de ser um burguês inveterado pela celebridade e, até, de manter uma relação adúltera com uma cunhada que vivia em sua casa. Por fim, taxa-o de falocrata, misógino e homofóbico. As reações ao escrito de Onfray, segundo matéria publicada na Folha de São Paulo (Caderno Mais, edição de 25 de abril de 2010), vieram de dois intelectuais: Elisabeth Roudinesco, psicanalista, nascida em 1944, professora de História da Universidade de Paris, autora de “Em defesa da Psicanálise” e a “A Parte Obscura de Nós Mesmos”; e John Forrester, Chefe do Departamento de História e Filosofia da Ciência da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, autor de “Seduções da Psicanálise”. Roudinesco, inclusive, desafiou Onfray para um debate e ele não aceitou. Interessante, tanto o nazismo como o fascismo não morriam de amores pela psicanálise. E sabem de uma coisa?! Não estou nem aí para o que dizem de Freud. O que interessa é o legado que ele deixou para a humanidade, como, por exemplo, quando ele enfoca a questão do desenvolvimento humano.
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Zigmunt Bauman 
A propósito, a civilidade pressupõe três elementos essenciais para sua desenvoltura: beleza, limpeza e ordem. Isto é de Sigmund Freud (1856-1939), o pai da psicanálise. Não só isso, mas o homem que reinventou tudo o que se sabia até então sobre a alma humana. Para ele, tudo o que é “civilizado” é limpo e, portanto, ordenado. Zigmunt Bauman, sociólogo polonês, professor da Universidade de Varsóvia, na sua obra “O mal-estar da pós-modernidade”, afirma que o estado de “limpo” ou “sujo” relaciona-se ao estado de “ordenado” ou “desordenado”. A limpeza, em sua concepção, é o estado de ordenamento das coisas. O que está no lugar certo está limpo, e não “sujando” outras coisas. Ele diz: “O oposto da ‘pureza’, o sujo, o imundo, os ‘agentes poluidores’ são coisas ‘fora do lugar’. Não são as características intrínsecas das coisas que as transformam em ‘sujas’, mas tão-somente sua localização e, mais precisamente, sua localização na ordem das coisas, idealizada pelos que procuram a pureza. As coisas que são ‘sujas’ num contexto podem tornar-se puras exatamente por serem colocadas num outro lugar e vice-versa. Sapatos magnificamente lustrados e brilhantes tornam-se sujos quando colocados na mesa de refeições. Restituídos ao mundo dos sapatos, eles recuperam a prístina pureza. Uma omelete, uma obra de arte culinária que dá água na boca quando no prato de jantar, torna-se uma mancha nojenta quando derramada sobre o travesseiro”. A concepção de limpeza, nesse contexto de elo com a civilização, ou na cultura, como queria Freud, importa na análise de uma questão também abordada por Bauman.
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Para o escritor polonês, “Há, porém, coisas para as quais o ‘lugar certo’ não foi reservado em qualquer fragmento da ordem preparada pelo homem. Elas ficam ‘fora do lugar’ em toda parte, isto é, em todos os lugares para os quais o modelo de pureza tem sido destinado. Mais frequentemente, estas são coisas móveis, coisas que não se cravarão no lugar que lhes é designado, que trocam de lugar por livre vontade. A dificuldade com essas coisas é que elas cruzarão as fronteiras, convidadas ou não a isso. Elas controlam a sua própria localização, zombam, assim, dos esforços dos que procuram a pureza ‘para colocarem as coisas em seu lugar’ e, afinal, revelam a incurável fraqueza e instabilidade de todas as acomodações”. Conceber-se civilizado é, portanto, não sujar nem estar sujo, ou, ainda, não desordenar a ordem exigida pela civilização. Ante essa proposição, configurada e até um tanto intrínseca à mentalidade do homem, obtemos resposta para as atitudes individuais e coletivas de rejeição ao estranho e ao estrangeiro. Noutra quadra, o homem deseja obter felicidade. Todos querem ser e permanecer felizes. Para atingir esse objetivo, a ação humana deve visar não apenas à supressão do sofrimento e do desprazer, mas também à experimentação de sentimento de prazer, intensa e permanentemente. Mas o prazer permanente e intenso existe? Freud cita Goethe: “nada é mais difícil de suportar do que a sucessão de dias belos”. Qualquer prazer permanente deixa de ser prazer. Assim, a felicidade resume-se a momentos, a experiências passageiras.
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A infelicidade, por sua vez, não perde sua força nem vigor se perseverar. Pode até se tornar crônica no indivíduo. E quais são os motivos da infelicidade, senão o sofrimento? Freud reflete sofrimento a partir de três direções: de nosso próprio corpo, do mundo externo e de nossos relacionamentos com os outros homens. Nosso corpo envelhece, adoece e nos ameaça constantemente de dissolução. A sua decadência natural sempre foi motivo de profunda agonia e, nos tempos atuais, tem sido francamente combatida por processos médicos de todo o gênero. A medicina desenvolve, testa e aplica dezenas de métodos de manutenção e conservação do corpo utilizando medicamentos e cirurgias – como a plástica – que rejuvenescem. Contudo, o tempo é implacável e todos sabem que o corpo não resistirá. Já a segunda fonte de sofrimento advém do mundo externo, “que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas”. Essa ameaça é tão evidente quanto o da dissolução do corpo. Semanalmente, sabemos da ocorrência de catástrofes e a cada ano elas se aproximam de nossas casas, como resultado dos saques à natureza. Finalmente, nosso relacionamento com outros homens é a fonte mais penosa do sofrimento que qualquer outra. Podemos nos conformar com a fatalidade da morte e das catástrofes, por estar além de nossas possibilidades evitá-las; mas sucumbir à vontade, ao capricho ou à ganância de outro homem não nos é dado resignar. Enfim, Sr. Michel Onfray, como diria Winston Churchill, “é melhor fazer história do que se submeter a ela; ser um ator em vez de um crítico”.        




Post Scriptum
Cão Raivoso no Sótão do Coração

Em fevereiro deste ano postei em meu blog (www.clovisbarbosa.blogspot.com.br) o artigo, de minha autoria, “A Morte de Deus” e, no Post Scriptum, um texto de Marcelo Déda, em que ele abordava a morte de um amigo comum, Chico Mocó, e a necessidade de todos nós embriagarmo-nos naquela visão do poeta francês Baudelaire. Sobre os temas, recebi do amigo, grande orador e biscoito fino da intelectualidade sergipana, Fábio Túlio, digno presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 20ª Região, o seguinte texto, que tenho a honra de repassar aos meus leitores quinzenais, dada a riqueza da reflexão: “Caro amigo e intelectual Clóvis. É bom voltar a receber suas mensagens, cujos textos - ora de reflexão, ora de afetividade, sempre de encantamento - acerca dos fatos e dados dessa nossa vida besta são sempre oportunos. O tema que agora você trás à discussão - o da violência - tem origens as mais diversas, mas talvez o poeta, o velho e grande poeta, tivesse razão, ontem como hoje: todo homem tem um cão raivoso no sótão do seu coração! Alguns de nós têm coleiras fortes para segurar essa fera; outros, no entanto, comprazem-se em deixar a besta solta, a atacar os incautos. Cérbero anda a solta nas ruas de nossas cidades, e os motivos são vários, tantos que não é possível abarcá-los aqui, dado que não tenho a profundidade de sua análise nem o talento de sua síntese. O magistral filósofo Espinoza racionalista do Século XVII - judeu renegado e excomungado aos 24 anos - disse, a propósito do homem, que nós somos um ser de desejo, e os nossos desejos nos opõem. Ele, portanto, antecipou sistemas de pensamento importantes como os de Schopenhauer, Nietzsche e até mesmo Freud, ainda que seus pósteros não o tenham admitido expressamente. Os nossos desejos nos opõem no nível atômico, individual, e no nível molecular, social, diria eu. E quiçá aí esteja, ao fundo e ao cabo, a raiz de todas as formas de violência. É usual dizer-se que a educação e a boa vida podem minorar isso, civilizando o homem, mas é igualmente verdadeiro - di-lo a História - que elas não sufocam para sempre esse ardor maligno presente atavicamente em todo homem, certamente; basta lembrar que as maiores atrocidades do Séc. XX foram praticadas pelos povos mais cultos e abonados da Terra, como os alemães, por exemplo. Lembro a você, estimado amigo e dileto professor, que alguns soldados britânicos usavam bonés com a seguinte inscrição durante a guerra do Afeganistão, essa a cujas barbaridades assistimos, recentemente, em nossas telas de computador e nos nossos aparelhos de TV: "Fazemos coisas ruins com pessoas más". Veja que coisa mais interessante, porque penso que esse fato daria para escrever um tratado. E, para além das muitas indagações que ele suscita, entendo que a mais relevante, de cunho eminentemente filosófico e que desafia nossos sistemas morais, é a seguinte: é correto fazer o mal às pessoas más? Como somos de tradição cristã, a nossa primeira reação é dizer um sonoro não! Mas seria precipitado, e imagino que em algumas situações seríamos levados a dizer, mesmo que constrangidos, um patético sim. Eis que não se trata de defender o relativismo frente ao absolutismo cognitivo ou moral, de jeito nenhum. Não nos perderemos em intermináveis debates sobre se a Verdade e o Bem existem por si. Ptolomeu e Einstein tinham ideias diferentes sobre o tamanho do universo; João Paulo II e Richard Dawkins pensavam de modo oposto sobre religião e seus reflexos no mundo moderno; os concretistas nada tinham em comum com os parnasianos acerca da ideia de beleza poética. Alguns de nós se posicionarão a favor dos primeiros destes termos binários; outros, em favor dos segundos. Os relativistas, todavia, dirão que todos estão certos, a partir de seus particulares pontos de vista. A democracia, que você cita brilhantemente em seu texto, é apenas uma forma de permitir a convivência num mundo plural, absurdo e esquizofrênico, que vem de ser acometido por um mal de graves proporções: o politicamente correto, que entorpece o debate e embota as mentes. Outrossim, resta-nos o ideário de ter algo a fazer, alguém para amar e um tantinho de esperança, eis que tudo isso é essencial à vida. Parabéns pelo seu trabalho, que esparge luz num mundo envolto em trevas. Fábio Túlio”.

- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de 03/09/2016, Caderno A-7.

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