domingo, 24 de novembro de 2019
O Burro que Espirrava Dinheiro
Opinião
Georges Benjamin Clemenceau
O Burro
que Espirrava Dinheiro
Clóvis Barbosa
Quando o
consagrado fabulista alemão Ludwig Bechstein, nascido em Weimar no ano de 1801 e falecido em
Meiningen em 1860, publicou O burro que espirrava dinheiro, ele supôs que
apenas as crianças acreditariam na estória,
afinal de contas, seu papel era entreter os jovens
leitores. Passados quase cento e cinquenta anos da morte do escritor, é
possível ver que alguns adultos, mais burros que o burro da fábula, acham crível espirrar dinheiro. Ludwig Bechstein também é conhecido pelo famoso texto
“Der Rattenfaenger Von Hameln” (O caçador de ratos de Hameln), onde ilustra a
biografia de uma cidadela que, após ficar livre de uma praga de ratos, por
conta da ação paranormal de um mago flautista, não o recompensou segundo aquilo
que ficara acordado. Consequentemente, o músico, irritado, acabou por
enfeitiçar todas as crianças da cidade, levando-as embora para sempre. Bechstein
foi sutil, mas o
conteúdo que se esconde por trás de suas fábulas é acachapante: a visão
capitalista do sistema, que arquiteta as coisas tão-somente sob o prisma do
controle financeiro. Parece que, às vezes, é melhor arrancar o dedo de alguém a privar-lhe de cinquenta
centavos que sejam. Os cidadãos de Hameln preferiram perder as suas crianças a
pagar o que prometeram ao flautista, caso ele os livrasse dos ratos. Isso,
historicamente, tem gerado um desconforto incrível na relação entre governos de
esquerda e o proletariado, em tese responsável pelo surgimento desse núcleo de
poder. É que a luta de classes teria dado corpo ao aparecimento de uma
filosofia nacional-socialista, deturpada aqui e acolá.
Houve, aliás, quem
chegasse a crer que a dominação do sistema por parte dos donos do poder
impediria um diálogo isonômico entre estes e os trabalhadores. Isso se deu ali
na década de 1920, quando alguns intelectuais de língua alemã resolveram fundar
o Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt, que entrou para a História da
Filosofia como A Escola de Frankfurt,
cujo principal mote está consubstanciado na denominada teoria crítica. Mas o
que vem a ser tal teoria? Simples. Consistente em uma fusão de conceitos marxistas e
freudianos, tal teoria difundiu o ponto-de-vista de acordo com o qual a
sociedade de massa seria guiada pelos controladores da tecnologia, posta à
disposição da defesa de uma perspectiva única e exclusivamente capitalista. Noutras palavras, quem detém o capital
(leia-se poder) controla o proletariado, hipnotizado pela instrumentalidade das
cifras. Em síntese, para a Escola de
Frankfurt, não há razão, não há dialética, não há esclarecimento. Há,
apenas, o desencantamento do mundo. Manda quem pode e obedece quem tem bom senso. Theodor Ludwig
Wiesengrund-Adorno e Max Horkheimer são os mais radicais na diagramação dessa tese. De acordo com eles, morreu a
razão crítica do proletariado, ao qual, homogeneizado, massificado e sem
consciência revolucionária, só restaria a indústria
cultural. E a teoria crítica
teria que abrir espaço para a teoria
estética. Walter Benjamin arrematou tal estigma, afirmando que o
proletariado poderia ser politizado apenas pela ingerência de movimentos
artísticos a ele dirigidos. Parece que o proletariado apontaria para um
amontoado de patetas, que ficariam o dia inteiro tomando chibatada, enquanto
escutariam ou um poema de Brecht ou uma sinfonia de Mozart. Valendo-se,
inclusive, da filosofia de Herbert Marcuse, o proletariado acabaria por
traduzir o “homem unidimensional”, algemado e sem condições de digladiar com o
sistema que, em tese, o oprime.
Jurgen Habermas
Sorte do
proletariado e de segmentos avançados politicamente da humanidade que não
acreditam nessa lenga-lenga. Abaixo Frankfurt! Afinal, Adorno, Horkheimer e os
demais membros dessa cambada de pessimistas estão totalmente superados. E para
enterrar de vez no lixo da história as teses da Escola de Frankfurt, é que surge como texto de cabeceira a obra Modernidade versus Pós-Modernidade, de
Jurgen Habermas. Para ele, razão, verdade e democracia têm de ser enxergadas de
outra maneira. Não defendo o capitalismo, mas, nem por isso, creio que ele crucificou a razão. De forma alguma.
Habermas, como o último grande
racionalista, provou que a razão crítica de Adorno cede campo para a “razão
dialógica”, onde a linguagem e a argumentação preponderam. Daí a necessidade,
nos embates diuturnos que se travam no mundo dos conflitos, de se dispor dos
alicerces da liberdade comunicativa. Mas não é isso que tem acontecido
ultimamente na sociedade brasileira. Forjada nos porões do baixo clero da
política brasileira, uma crise sem precedentes tomou conta do país, iniciada
após a eleição da presidente Dilma e deixando um vácuo de poder desde o início de 2014. A grande consequência dessa
irresponsabilidade tem sido o caos gerado na economia do país, acarretando em problemas para a
maioria do povo brasileiro, como desemprego, aumento da violência e a
institucionalização da corrupção como regra de comportamento. E mais: a razão
dialógica deu lugar ao discurso impositivo. Nada de razão, nada de dialético,
nada de esclarecimento. Como já dito, manda quem pode e obedece quem tem bom senso.
O estadista e jornalista francês Georges Benjamin Clemenceau, foi
um político destemido, atuante, de força discursiva invejável, irreverente e
bastante firme na defesa de seus ideais. Estava como Primeiro-Ministro no fim da Primeira
Guerra Mundial quando da conferência de paz de Paris, que culminou com o “Tratado de Versalhes”. Pois bem. Dizia Clemenceau
que, em matéria de desonestidade, a
diferença entre o regime democrático e a ditadura é a mesma que separa a chaga
que corrói as carnes, por fora, e o invisível tumor que devasta os órgãos por
dentro. Para ele, as chagas democráticas curam-se ao sol da publicidade, com o
cautério da opinião livre; ao passo que os cânceres profundos das ditaduras
apodrecem internamente o corpo social e são, por isto mesmo, muito mais graves. Em outras palavras, na democracia,
é muito mais fácil detectar o submundo da corrupção e as suas influências nefastas. Essa lição do líder político francês é mais uma
tentativa de explicar a importância da preservação do Estado de Direito
Democrático. Somente quem viveu durante o período autoritário pode avaliar as consequências e os males sofridos. As experiências do Brasil (1937-1945
e 1964-1985), Portugal (1926-1933 e 1933-1974) e Espanha (1939-1976), para não
falar em outras, atestam como é restringido o
exercício da cidadania e como se dá a repressão aos movimentos de oposição,
quase sempre com violência. Para se ter ideia, basta ver o grau de
desenvolvimento e melhoria das condições de vida após a redemocratização nos
três países citados.
Para Aristóteles e Platão, os tiranos são ditadores que ganham o
controle social e político despótico pelo uso da força e da fraude. A
intimidação, o terror e o desrespeito às liberdades civis estão entre os
métodos usados para conquistar e manter o poder. Se a ditadura é o regime de
desrespeito às leis, às instituições e às liberdades civis, a democracia, ao contrário,
faz o caminho inverso: o respeito às normas e às instituições é o mais importante
passo para a solidificação de uma sociedade que tende a avançar no campo da
civilidade, da solidariedade e do respeito mútuo. Claro que sei que a
democracia não é um regime inerte, mas dinâmico, sempre estando em
transformação. Como diz Bobbio, “o estar em transformação é seu estado
natural”. Sei, também, que a democracia não goza no momento de ótima saúde, estando
sempre em ebulição. Mas isso faz com que todos aqueles que têm compromisso com a sua preservação,
com seu avanço, na busca do seu aperfeiçoamento, estabeleçam canais de reflexão
com os setores da sociedade que ignoram que é preciso respeitar as regras do jogo.
Para o bem de todos, é preciso que haja preponderância da “razão
dialógica” de que nos fala Jurgen Habermas, onde a linguagem e a argumentação
preponderam. Mas não basta a intenção. As armas devem ser deixadas em casa. O
argumento é o que deve prevalecer, ou seja, a razão dialógica. Dizia Winston
Churchill, premier inglês, que a
democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras que têm sido
tentadas de tempos em tempos.
Celso Antônio Bandeira de Mello
Celso Antônio Bandeira de Mello, um dos
maiores juristas do nosso País, recentemente falou em uma revista especializada
em direito. E lá pras tantas, resolveu filosofar sobre as relações humanas.
Disse: “O fato de ser racional não faz o homem diferente dos animais que vivem
em manada, que têm uma cabeça que guia e os outros vão atrás. Na sociedade
humana é igual, há os que pensam, e eles são poucos; os outros parecem que
pensam, mas não pensam, repetem. Eles não têm coragem de pensar. O mundo tem
que ser assim, alguns pensam e os outros acompanham o pensamento. Nós vivemos
um momento em que é a escória que pensa, que dirige. Mas claro que sempre
existem seres notáveis que lutam contra a escória e dizem o que deve ser feito.
São seres humanos maravilhosos”. Infelizmente, hoje, o que vemos são pessoas
que simplesmente desistiram de pensar. E por não pensarem, acreditam até que
centavos são mais importantes que a vida, como os habitantes de Hameln, ou mesmo que um
burro pode espirrar dinheiro.
- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição
de fim de semana, de sábado a segunda-feira, 17 a 19 de setembro de 2016,
Caderno A-7.
- Postado no Blog “Primeira Mão”, às 19:01, em 18
de setembro de 2016, site:
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