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sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

O Direito Achado na Rua


Opinião
O Direito Achado na Rua
Clóvis Barbosa
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Em dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Resultado das atrocidades testemunhadas na 2ª Guerra, a Declaração deu especial atenção à dignidade humana como postulado. Quarenta anos depois, o Brasil promulgaria uma constituição. A Carta de Outubro, como é chamada por aqui, ali no art. 1°, III, estabelece ser um dos fundamentos da república a dignidade da pessoa humana, associando a ela os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Interessante que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, no art. XXIII, n° 1, diz que toda pessoa tem direito a condições justas e favoráveis de trabalho, bem como à proteção contra o desemprego. Há outros direitos sociais mencionados no art. XXIII. Contudo, o art. XXV parece ser mais contundente, ao determinar que “toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego”. É bem verdade que o número de pessoas vivendo em situação de pobreza extrema no Brasil caiu 64% entre 2001 e 2013, passando de 13,6% para 4,9% da população, segundo dados divulgados na época pelo Banco Mundial. A redução - que pode perder força com a atual crise econômica - foi calculada com base em uma nova linha de pobreza estabelecida pelo banco, de US$ 1,90 (cerca de R$ 7,32) por dia, e é maior do que a divulgada anteriormente. Apesar disso, ainda existem no Brasil 9,5 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza.
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Em julho de 2003 sancionou-se a Lei n° 10.695, que deu nova redação ao art. 184 do Código Penal. Esse artigo trata da criminalização da conduta de quem viola direitos autorais: a pirataria. As penas para a pirataria variam de três meses de detenção a quatro anos de reclusão. Como se vê, pirataria dá cadeia, malgrado muitos dos brasileiros que vivem abaixo da linha de pobreza, e até alguns que vivem acima dela, faça desse ilícito uma profissão. Ora, mas quem quereria viver com um salário de R$ 7,32 (sete reais e trinta e dois centavos) por dia? Sete reais e trinta e dois centavos são capazes de oferecer condições justas e favoráveis de trabalho? Sete reais e trinta e dois centavos garantem direitos sociais, como saúde, bem-estar, alimentação, vestuário, habitação e cuidados médicos? Por coisas como essas, foi que, em 1987, um ano antes da promulgação da Constituição Federal de 88, intelectuais da Universidade Nacional de Brasília fundaram o chamado “direito achado na rua”. Fruto de pesquisas concentradas no âmbito do núcleo de estudos para a paz, essa corrente teve como grande scholar o professor Roberto Lyra Filho, para quem o direito só teria significado se partisse de uma análise da prática social, fincada no empirismo e na disputa aberta pela vitória da justiça sobre a lei. Por conseguinte, Lyra Filho consubstanciava seus pontos de vista em pensamentos alternativos, heterodoxos e, antes de mais nada, não-conformistas. Em suma, o direito achado na rua realiza uma “leitura dialética do fenômeno jurídico”.
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 O direito achado na rua não é invenção exclusivamente nacional. Os anglo-europeus já haviam pensado o people’s law of the streets e os franceses já tinham concebido o droit qu’on trouve dan la rue. Flexibilidade é a palavra-chave do direito achado na rua. Plagiando o próprio prof. Lyra Filho, “o direito só pode ser compreendido como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”. Para ele, o direito “nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos e sua filtragem, nas normas costumeiras e legais, tanto pode gerar produtos autênticos, quanto produtos falsificados”. Produtos falsificados, para Lyra Filho, seriam, por exemplo, “as leis que representam a chancela da iniquidade, a pretexto da consagração do direito”. Essa concepção marxista, também cognominada “humanismo dialético”, detecta na metáfora da rua (que aponta para a polis) a metamorfose da “multidão de solitários urbanos em povo”, conclamando “a rua da cidade para a vida humana”, consoante preconiza Marshall Berman, na sua obra “Tudo que é Sólido Desmancha no Ar”. Em suma, o operador do direito deve “reivindicar a rua para a vida”. A vida nasce na rua. O direito nasce na rua. O povo idealiza a rua. O povo, como Castro Alves canta: “A praça! A praça é do povo, como o céu é do condor”. De modo bem simplista, o direito achado na rua pugna por uma recriação do ordenamento, tendo nas massas seu centro gravitacional de criatividade.
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A edificação de uma cidadania sócio-jurídica é a meta do direito achado na rua, que ambiciona “relações de trabalho mais livres”; deseja pôr um termo na opressão que um indivíduo lança sobre outro. Disso, advêm algumas reflexões: estimativas dão conta de que aproximadamente três milhões de pessoas assistiram à versão pirata do filme “Tropa de Elite”. Ao invés de dar um tratamento criminal a esses indivíduos, os produtores da obra foram buscar o direito na rua e, dentro de uma concepção humanisticamente dialética, vislumbraram a alternativa de propiciar-lhes a expiação pelo “pecado” que cometeram. Abriu-se uma conta, na qual cada um dos “infratores” poderia fazer um depósito, idêntico ao valor do ingresso de cinema, o qual seria revertido em favor do Instituto Nacional do Câncer. Bela e criativa sociabilização. O fisco, entretanto, lançou mão de outra postura. No Pré-Caju de 2009 anunciou que iria apreender todos os CDs e DVDs piratas que estivessem sendo comercializados no itinerário da festa, além de enquadrar os “marginais” nos rigores da lei. Não é assim que quer o art. 184 do Código Penal? Parabéns ao fisco, que não achou o direito na rua, mas nos códigos. Não deixa de ser uma perspectiva. Nada zetética; totalmente dogmática. Os auditores, certamente, cumpririam a lei. Difícil é saber se aperfeiçoaram os ditames da justiça, em face de um povo que vive abaixo da linha de pobreza e que perscruta na rua os seus direitos.
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Essa dicotomia, todavia, é intransponível. Historicamente, cobradores de impostos sempre foram colocados ao lado de prostitutas e pecadores. Que o diga a bíblia (Mateus 21,32 e Marcos 2,16). Ainda assim, Cristo hospedou-se na residência de Zaqueu, talvez um dos mais contumazes cobradores de impostos de Jericó. Sucede que Zaqueu arrependeu-se das extorsões e acusações falsas que praticou para arrancar tributos. Jocosamente, talvez tenha achado, na rua, o direito das suas vítimas. Em verdade, o fisco federal não extorque e tampouco acusa os cidadãos que vivem abaixo da linha de pobreza. Quem faz isso é a lei. Mas a lei é menor do que o ordenamento jurídico. Na Alemanha, por exemplo, tutelou-se a teoria social da ação, oriunda dos gênios de Jescheck e Wessels. Para essa teoria, ação “é a conduta socialmente relevante”. Daí, perguntar: é socialmente relevante a conduta de quem pirateia por viver abaixo da linha de pobreza, procurando, assim, sobreviver com dignidade, como quer a declaração universal dos direitos do homem? É correto exigir conduta diversa dessa pessoa? Em 1998, Luiz Vicente Cernicchiaro, então ministro do STJ, ao relatar o Recurso Especial nº 112.600, disse: “Cumpre considerar o sentido humanístico da norma jurídica. E mais. Toda lei tem significado teleológico. A pena volta-se para a utilidade”. Pois bem, qual a utilidade em reprimir aquele que, vivendo abaixo da linha de pobreza, vende um CD ou DVD pirata? 
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Por conta disso é que se trata o fisco como leão. Sucede que a mesma bíblia, que apresenta um Cristo que come com cobradores de impostos, preconiza: “como um leão furioso ou um urso feroz, assim é o governo mau que domina um povo pobre” (Provérbios 28,15). Seria precipitado dizer que o governo é mau. As leis brasileiras, no entanto, por não terem sido achadas na rua, são más. Os auditores federais, porém, embora cumpram leis más, agem de boa-fé, dando cabo de uma norma que foi achada em qualquer lugar, menos na rua, menos nas praças. Uma lei talvez achada no gabinete de um performático esquizofrênico, que pensa sob o pálio de um ar-condicionado. Ainda assim, um conselho para o pessoal do fisco, também tirado da bíblia: “não fiques justo demais. Por que causar a ti mesmo a desolação?” (Eclesiastes 7,16). É suficiente a desolação de quem ganha R$ 7,32 por dia.  



POST SCRIPTUM
O PARENTE

O Brasil, durante muito tempo, principalmente na República Velha (15 de novembro de 1889, com a proclamação da República, até 1930, com a queda do presidente Washington Luís), conviveu no seu interior com a figura do chefe político, também alcunhado de Coronel. Eram figuras que exerciam absoluto domínio sobre as pessoas que viviam em suas terras ou delas dependiam para sobreviver. Apesar do seu declínio, ainda hoje encontramos representantes desse período triste da história rural brasileira. O novo cacique sobrevive da desorganização da prestação dos serviços públicos. Ocupam esses espaços passando a ter o controle da população em todos os níveis. Numa cidade do interior, alguns anos atrás, ocorreu um fato que dá para aquilatar a força e o respeito que essas figuras impõem aos cidadãos. Azedo era o seu nome. Certo dia, ao retornar mais cedo das suas atividades de motorista de pau-de-arara, encontrou a sua mulher na cama com um sujeito. Correu para pegar um revólver no veículo e a mulher e o amante desapareceram pelo quintal. O homem enlouqueceu e gritava que ia matar os dois. Não colheu êxito, pois ambos desapareceram completamente. Foi de bar em bar e dizia que havia sido traído e aquilo não iria ficar assim. Os amigos pediam calma, mas ele não tirava da cabeça a ideia do crime. Já tarde da noite, o chefe político da cidade mandou chamar Azedo. Lá já se encontravam os Azedinhos, os dois filhos do casal, que estavam chorosos. O chefe perguntou o que aconteceu e ele disse que tinha encontrado sua mulher na cama com outro homem. Quem era o homem que estava com sua mulher, perguntou o Coronel. Ele disse ser o seu primo Dedé. - Como, seu primo Dedé? Ora homi, aí não foi traição. Traição seria se fosse uma pessoa de fora, que não fosse parente. É o mesmo sangue. Tome prumo de homi, Azedo, vá buscar sua mulé e traga pra casa. Faça as pazes com Dedé. E não é que Azedo se convenceu? Chamou a mulher de volta e reatou relações com Dedé. Nos bares da cidade, quando indagado da traição pelos amigos, não hesitava: – Meu amigo, você quer teimá com o coroné? Ele é homem de estudo e me disse que traição de parente não vale. Ora, não é o mesmo sangue? 

- Publicado no Jornal da Cidade, edição de 1º de outubro de 2016. Caderno A, página 7.
- Postado no Blog Primeira Mão, em 02 de outubro de 2016, conforme sítio:

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