sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020
Escombros de uma Chaminé
Opinião
Escombros de uma Chaminé
Clóvis Barbosa
Numa
discussão com um grupo de estudos de sociologia da religião, em São Paulo, quiseram
saber se qualificaria como “omissa” a decisão tomada por Pilatos contra Cristo.
Repliquei que não. “Desprezível” foi a resposta, “na acepção mais diminutiva
que puder ser atribuída à palavra”. E expliquei por que empregara termo suficientemente
carregado de menosprezo e rejeição. Pilatos é asqueroso e repulsivo não por
aquilo que o afamou (o suposto ato de abster-se quanto à condenação de Jesus).
Não. A conduta que verdadeiramente o realça não é a da neutralidade quanto ao
assassinato do redentor, pois ele decidiu. A dramaturgia abjeta, estampada na
sujeira moral de lavar as mãos, não implicou uma renúncia à prerrogativa de
sentenciar, mas redundou num pronunciamento de submissão à chantagem da ralé
farisaica (que insinuara ser a libertação de Cristo um atentado contra a
soberania do imperador). E, nisso, o prefeito da Judéia tremeu. Pensem comigo.
Que reação esperar de covardes, quando são postos diante dum jogo de sonora
inevitabilidade? Gente sem couraça e dinamismo de caráter logo argui a incompetência
para deliberar como válvula de escape. Foi o primeiro recurso de que Pilatos
lançou mão. Ao saber que o réu, sobre o qual pesava a imputação de blasfêmia (porquanto
se tivesse apresentado como a própria divindade), era egresso da Galiléia,
driblou a pressão da turba, declarando que só Herodes podia debruçar-se sobre a
suposta infração. Com isso, ainda conseguiu reatar laços com o governante da
província vizinha, seu desafeto até então. O desmiolado, porém, ao invés de
ater-se ao libelo que os adversários de Jesus irrogavam, armou uma patacoada e
fez estridente panavoeiro circense, exigindo de Cristo a realização de
milagres, em troca da absolvição. Ante o silêncio do acusado, tomou-o por louco
e o devolveu para Pilatos.
Sendo
Páscoa, o prefeito partiu para aquilo que, contemporaneamente, chamaríamos “plano
b”. Utilizou a tradição de libertar alguém contra quem tivesse sido prolatada
pena capital. Medroso, em vez de ele próprio emancipar o homem que sabia inocente,
apostou naquilo que, estrategicamente, era a logística do comodismo. Pinçou
Barrabás, o mais seboso dentre os delinquentes presos nas masmorras, pondo-o ao
lado do nazareno, a fim de compelir a multidão a ser compassiva. Seria um
despautério anistiar o outro, contra quem pesavam medonhos antecedentes.
Barrabás era um assassino contumaz, estuprador detestável e ladrão repugnante.
Na fragilidade mental que intoxicava o pensamento de Pilatos, o povo nunca optaria
por ver solto um câncer dessa dimensão. Mas optou. “Dê-nos Barrabás”. Mas
também restava a Pilatos o uso da chantagem. Canalhas sempre se impõem a função
enlameada do chantagista. Mandou trazer água. Nela, pretendeu lavar as mãos do
sangue dum justo. “Minhas mãos estão limpas do sangue deste homem”. “Que o seu
sangue caia sobre nós e sobre os nossos filhos”, rebateu a multidão. “Ele disse
ser o seu rei. Vocês matariam o seu rei?”. “Não temos rei, senão César. Se você
não o matar, irá pôr-se contra César, nosso único rei”. Foi o quanto bastou.
Agora, embora de mãos lavadas, Pilatos viu-se emporcalhado. E, chafurdando, decidiu.
Aqui surge o dado que poucos equacionam. Lavar as mãos não foi deixar de
decidir. Lavar as mãos traduziu um estelionato litúrgico de auto-justificação,
como quem diz que decide contra seus princípios, mas porque as amarras que lhe
impuseram não o deixaram solto para decidir como a voz de sua consciência
balbuciava. Algo semelhante àquilo que, hoje, alguns poucos juízes com diarreia fazem, laureando marginais sob escusa de serem serviçais da lei.
Não
contemporizo. O magistrado que desejar manter as mãos limpas, não as lavas com
água, mas com princípios. Tércio Ferraz Jr., por exemplo, ensina que sentenças
são normas. Para o jurista, elas estarão imunizadas, ou seja, respaldadas
quando acharem amparo em normas superiores que as sustentem. Nesse sentido, e
apesar de uma sentença não poder ser proferida contra a lei, ela também não
pode sê-lo para tutelar o mal. Aí, ele se vale da ilustração do homem que
constrói uma chaminé, dentro das regras urbanísticas municipais, não porque
queira uma chaminé, não porque ela lhe seja realmente útil, mas porque quer
projetar sombra sobre a piscina do vizinho. Pela lei, ele estaria alinhado. Mas
o judiciário, enfrentando o formalismo da lei (em respeito à justiça, enquanto
princípio fundamental do Direito), determina a demolição da chaminé. Decisão
contra a lei, mas a favor do que é bom e correto. Para o bem ou para o mal,
obviamente, a consciência que deve reger a trilha a ser seguida pelas decisões
é a do juiz. Os aplausos pelos acertos serão a ele outorgados, assim como as cobranças
por eventuais equívocos. A alusão, aqui, é a cobranças morais. Volto ao professor
Tércio Ferraz Jr., que fala de uma coisa chamada imunização das normas
jurídicas. Sentenças são normas. Assim, como as sentenças estarão imunizadas?
Se elas estiverem respaldadas em norma superior que as justifique, como dito
anteriormente. O leitor deve atentar para o uso do vocábulo “norma”, ao invés
de “lei”. A norma é a lei que está de acordo com a “normalidade”, com o sentimento
de justiça que a sociedade naturalmente possui, de acordo com o professor
Goffredo Telles Júnior. Uma lei injusta, consequentemente, não é “normal”. Por
conseguinte, ela não é uma “norma”, é apenas uma “lei”. Uma decisão judicial
injusta também não é “normal”.
Logo,
ela não se reveste com a autoridade de uma “norma”. Atentemos para o caso do
julgamento de Nuremberg. Com efeito, os nazistas praticaram atrocidades contra
a humanidade. Mas tudo o que eles fizeram estava respaldado num alicerce constitucional
formalmente perfeito (numa visão míope da doutrina kelseniana). Não havia uma
constituição que alicerçava as ações de Hitler? Mas será que essa constituição
estava imunizada pela norma fundamental? Por aquilo que Kant denomina
imperativo categórico? Kant ensina que devemos “agir de tal maneira, que o
fundamento de nossa ação se transforme em princípio de uma legislação
universal”. Assim, perguntemos: os campos de concentração achavam eco no
princípio de uma legislação universal? Perguntemos mais: já que não havia legislação
que previsse punição para a ação dos nazistas, eles deveriam ficar impunes,
apenas por questões formais? Afinal, como condenar alguém sem lei anterior que
definisse a ação desse sujeito como crime? De qualquer modo, seria “normal”,
para a humanidade, deixar os nazistas sem punição, por conta de um respeito
“anormal” à formalidade? Portanto, sabemos que existem no Direito dois setores
distintos. Há aquele que congrega o erro e o acerto. Há, também, o que congrega
o justo e o injusto. Daí, uma decisão até pode estar certa, mas ser injusta; ou
estar errada, mas ser justa. E isso não é complicado de entender. O hipotético
erro poderá estar ou no plano formal ou no plano do conteúdo. Desse modo,
quando um juiz (legalista em sua essência) adota o acerto como princípio básico
da formatação das decisões, é melhor que ele acerte no conteúdo e erre na
forma, se não for possível acertar nas duas coisas ao mesmo tempo. Interessante
é que o próprio ordenamento assimila tal raciocínio quando acata, por exemplo,
o que chamamos de fungibilidade.
Fungibilidade
é uma espécie de adaptação automática, cuja ideia advém da finalidade
primordial do Direito, que é propagar justiça. Dessa maneira, se, numa
determinada ação, o autor pede uma medida cautelar quando o certo seria pedir
uma antecipação de tutela [os termos jurídicos são necessários], o juiz deverá
antecipar a tutela, mesmo que, formalmente, o pedido não tenha sido certo. Por
quê? Porque não é justo que alguém seja prejudicado tão-somente em razão de um pequeno deslize, de uma
mera filigrana. A decisão de um julgador não pode gravitar em torno de um
epicentro vazio, seu juízo não pode estar concentrado naquilo que o saudoso
procurador de justiça sergipano Gilberto Vila-Nova chamava de “perfumaria
jurídica”. É preciso que as pessoas saibam que a lei não é o fim do direito, mas apenas o início de um raciocínio jurídico. O fim
do direito é a justiça. E a justiça só é atingida quando se faz valer a norma,
ou seja, a determinação verbalizada conforme a “normalidade”. Certa vez, o
escritor russo Dostoievsky afirmou que “todos somos responsáveis por tudo,
diante de todos”. Partindo dessa premissa, o filósofo francês Comte-Sponville
distinguiu “valor” de “verdade”, aliás, uma obra que deveria ser vista por
todos nós brasileiros nesse momento instável nos campos da economia, da política
e da ética em nosso país. Partindo, pois, dessa
singela reflexão, é que registro o meu irredutível desprezo por Pilatos.
Apegado à formalidade e à insana demagogia dos fariseus, imolou um justo e
livrou um pilantra. De mãos “limpas”, mas com o espírito encardido, caiu em desgraça
junto ao imperador romano Calígula após o trucidamento de grande número de
samaritanos, o que o levou ao suicídio quatro anos após. É o fim de juízes
cartilaginosos: ser encobertos pelos escombros duma chaminé, destroçada pela
justiça do tempo.
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Publicado no Jornal da Cidade,
Aracaju-SE, edição de fim de semana, sábado a segunda-feira, de 15 a 17 de
outubro de 2016.
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Postado no Blog Primeira Mão,
Aracaju-SE, em 16 de outubro de 2016, às 16:00, site:
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