Aracaju/Se,

quarta-feira, 10 de março de 2021

Opinião Pessoal 

O Último Rei da Escócia

Clóvis Barbosa

Sabe aquela sensação que nos faz crer que tal pessoa é boa, sem sê-lo? Pois bem. A estrutura psicanalítica dessa leitura míope da realidade encontra seu arcabouço traçado pela Bíblia. Parece que tudo está no livro sagrado do cristianismo. Surpreendente é que está mesmo. Na segunda carta aos Coríntios, capítulo 11, versículo 14, o apóstolo Paulo diz que não deveríamos nos impressionar com falsos enviados do Messias, ressaltando que a existência desse tipo de gente “não é de admirar, pois até Satanás pode se disfarçar e ficar parecendo um anjo de luz”. Ou seja: o diabo às vezes reside na luz. Isso, por exemplo, foi captado pela lente de Kevin MacDonald, diretor do filme “O Último Rei da Escócia”. Nele, MacDonald destrincha a carreira política do ditador de Uganda, Idi Amin Dada, interpretado pelo estonteante Forrest Whitaker, que, por conta do irretocável trabalho, ganhou o Oscar de melhor ator em 2007.
Nicholas Garrigan e Idi Amin Dada
O enredo é sedutor, assim como a luz também o é. Dizem os anais da história que Idi Amin era um amante da cultura escocesa. Por isso, contratou como seu médico particular um escocês, o doutor Nicholas Garrigan. Sucede que maior do que a paixão de Amin pela Escócia era a abnegação de Garrigan pelo ditador, em parte resultante do carisma que a oratória desse meganha implantava nos corações daqueles que o ouviam discursar. Amin chegou a declarar, em dado momento de sua célere carreira despótica, que se considerava “a figura mais poderosa do mundo”. Ora, lengalengas à parte, o certo é que o doutor Garrigan se viu em maus lençóis, sendo forçado, inclusive, a fugir de Uganda para não morrer nas garras de Amin, que governou de 1971 a 1979, tempo durante o qual chacinou mais de 300 mil ugandenses. Em síntese, um escocês lúcido, médico, acreditou que um assassino seria, digamos, “um anjo de luz”.
Houve quem acreditou, nos idos de 2008, que o STF produziu uma decisão iluminada quando declarou que a Lei de Imprensa não foi recepcionada pela CF de 1988. Mostramos o equívoco desse ponto de vista em artigo publicado ano passado, sob o título A Morte da Lei de Imprensa. Ainda assim, houve quem discordasse da nossa postura, lançando mão de argumentos tipicamente retóricos: “a Lei de Imprensa é um resíduo da ditadura”, “a Lei de Imprensa está na escuridão dos calabouços em que militares torturavam jornalistas” etc. Será mesmo? Procurei dialética nesses postulados. Mas não há. Parece o discurso que Idi Amin Dada usou em 1971, quando depôs o presidente Obote em Uganda. Raciocinemos, portanto (e o STF sinalizou para essa consequência natural): expurgada a Lei de Imprensa, sobejou o que para os jornalistas, em sede de abuso na liberdade de manifestação do pensamento?
Resposta: o restante do ordenamento. Vale dizer, o Código Penal, o Código Civil, a própria Constituição. E algo precisa ser categorizado, com menos poesias e mais prosa: a CF assegura, no art. 5°, inciso IV, que é livre a manifestação do pensamento. Contudo, a mesma CF, no mesmo artigo, desta feita no inciso X, apregoa que a violação da imagem das pessoas gerará direito a indenização pelo dano material ou moral dela decorrente. Por conseguinte, ainda que não haja Lei de Imprensa para “censurar” jornalistas, haverá um Código Penal e um Código Civil, o primeiro recepcionado pela CF e o segundo de constitucionalidade jamais questionada. Daí a indagação: que vantagens os jornalistas tiveram com a eliminação da Lei de Imprensa? Sinceramente, não sei. Mas permitam-me apontar as inúmeras desvantagens, dando especial enfoque ao aspecto penal, certamente o que mais interessa aos jornalistas, radialistas, etc.
(01) Pela Lei de Imprensa, alguém que, supostamente, tenha sido ofendido por um jornalista tinha, no campo penal, três meses para ajuizar queixa-crime ou ofertar representação criminal; pelo Código Penal, o prazo é maior: seis meses. Perde o jornalista com o prazo mais elástico. (02) A prescrição, pela Lei de Imprensa, independentemente da pena a ser aplicada, ocorria em dois anos; pela norma penal, poderá chegar a oito. E nem venham dizer que, como o STF não suspendeu o art. 41 da Lei de Imprensa, embora se aplique o Código Penal, o prazo prescricional continuaria sendo o de dois anos. Nada disso. O Supremo já decidiu que não pode o magistrado misturar o que há de bom em uma lei com o que há de melhor em outra, sob pena de fazer as vezes de legislador. Ou uma lei na íntegra, ou outra, também na íntegra. Sobrou o Código Penal. Quem ganhou com isso? Não sei. Só sei que os jornalistas soçobraram.
(03) Pelo art. 43, § 1º, da Lei de Imprensa, o juiz, antes de decidir se recebe, ou não, a queixa ou denúncia, garantirá ao jornalista uma defesa prévia, grande oportunidade de convencer o magistrado acerca da inexistência de qualquer ilícito, impedindo o desenvolvimento do processo. Extirpada a Lei de Imprensa, não haverá a prerrogativa. (04) Pelo art. 73 da Lei de Imprensa, só há reincidência específica, ou seja, só será considerado reincidente o jornalista que já tiver contra si prolatada, e com trânsito em julgado, sentença condenatória por outro crime de imprensa. Diante disso, pergunto por que os encômios? Paciência. O Dr. Garrigan não venerou Idi Amin Dada? Mas essa conversa de que a Lei de Imprensa foi concebida na ditadura é verborragia. O mentor da Lei de Imprensa, Freitas Nobre, a concebeu anos antes do golpe militar de 1964, tendo sido um dos maiores defensores das liberdades. Aliás, foi perseguido por isso.
Deputado e Jornalista Freitas Nobre
Intrigante é que toda essa quizila sobre a Lei de Imprensa foi conduzida à revelia da biografia de Freitas Nobre. Em 25 de outubro de 2005, por ocasião da passagem dos trinta anos da morte do jornalista Vladimir Herzog, assassinado pela ditadura, o nome de Nobre foi lembrado de forma honorífica como defensor da imprensa, essa mesma imprensa que, à época, achava o Código Penal melhor do que a lei que nasceu para protegê-la. Abestalho-me. A norma penal saiu da cabeça de um grande jurista, Nelson Hungria, mas veio à tona em um período eminentemente ditatorial. Hungria foi nomeado Ministro do STF por um ditador, Getúlio Vargas, e manchou sua biografia com um episódio patético, em que rasgou uma decisão judicial, prolatando outra em seu lugar para agradar um sociopata, que fez história na pior fase da imprensa brasileira: Assis Chateaubriand.
Walter Benjamin
Diploma ditatorial por diploma ditatorial fico com a Lei de Imprensa. Fico com Freitas Nobre. Fico com Vladimir Herzog. Fico com a guerrilha de Uganda. Ao mesmo tempo, preocupei-me em 2008 com os jornalistas que aplaudiram o fim da Lei de Imprensa, fazendo-me recordar o jovem médico Nicholas Garrigan, que supunha ver um amigo em Idi Amin Dada. Curioso, venceu o inimigo. O perigo está exatamente aí. Porém, quando os jornalistas descobrirem que a derrocada da Lei de Imprensa interessa mais ao “inimigo” será tarde. E, como ensinava Walter Benjamin, “se o inimigo vence, nem os mortos estão seguros”.

Post Scriptum

O Desgosto

Dia de festa e tristeza na sede da Petrobrás na Rua do Acre, em Aracaju. Era a despedida de Frederico, conhecido como Seu Fredy, depois de quarenta anos de serviços prestados. Muita gente presente. Até José Eduardo Dutra, o presidente da Empresa, o Superintendente Derzen e vários diretores foram lá dar um abraçaço naquele homem que relevantes serviços tinha prestado à empresa petrolífera, tanto em Alagoas como em Sergipe, com passagem em Campos, Rio de Janeiro e Salvador. Era a sua tão esperada aposentadoria. Muito choro e muito discurso. Beta, a vitalina da turma - e que tinha, aqui prá nós, um amor platônico por Seu Fredy - recitou um poema sobre a despedida, culminando com a frase: despedir-se não é dizer adeus, é apoiar e desejar muita felicidade na nova jornada que está começando. Depois de muito lengalenga, veio o discurso do homenageado, dizendo que iria se dedicar ao remo, esporte que abandonou quando entrou na Petrobrás e a viver com a sua querida Lulu. Arrematou, citando Antoine de Saint-Exupery: “Cada um que passa em nossa vida passa sozinho, pois cada pessoa é única, e nenhuma substitui outra. Cada um que passa em nossa vida passa sozinho, mas não vai só, nem nos deixa sós. Levam um pouco de nós mesmos, deixa um pouco de si mesmo. Há os que levam muito; mas não há os que não levam nada. Há os que deixam muito; mas não há os que não deixam nada. Esta é a maior responsabilidade de nossa vida e a prova evidente que nada é ao acaso. Obrigado por ter compartilhado com vocês tantos e tantos bons momentos. Eu vou ter muita saudade”. Aplausos, abraços, beijos, lágrimas e muita emoção. Fredy era tido como um homem de grande alma. Vivia de casa para o trabalho e do trabalho para casa. Teve quatro filhos, todos já bem encaminhados, somente ele e sua Lulu moravam naquela ampla casa do Mar Azul. Por causa da festa de despedida chegou um pouco mais tarde em casa e sua Lulu estava à sua espera para saber tim-tim por tim-tim do ocorrido. Ainda emocionado, contou tudo, inclusive sobre a presença do presidente da Petrobrás e do Superintendente. No dia seguinte, logo cedo, foi para o Parque dos Cajueiros onde se encontrou com Reni, Geraldo e Chico Oliva no Barracão Náutico do Cotinguiba. Queria saber de um bom barco de remo e onde poderia comprar. De posse das informações, 30 dias depois chegava em sua casa um potente barco. Alegremente, chamou Lulu para conhecer aquele “lindo espetáculo”, vindo da fábrica já plotado com o nome de “Lulu”. Durante a espera, muniu-se de vários livros, do guia do remo e das aulas de Renir e Geraldo. Já sabia tudo sobre segurança, técnica e equipamentos. Lulu, quando viu o barco, gritou: - Mas que porra é isso, Fredy? Como é que você gasta o nosso dinheiro com essa merda? Pronto! A partir desse dia a vida de Fredy virou um inferno. Lulu, a meiga Lulu, se transformou numa bruxa. Era uma ladainha só. Mas no início Fredy não ligou muito, embora todo dia que voltava do remo, era admoestado com as agressões verbais: - é o velho safado querendo ser menino? No dia que me retar, velho rabugento, vou no Parque do Cajueiro e toco fogo naquela porra! A vizinhança não aguentava mais os gritos histéricos de Lulu. E não é que a ameaça se cumpriu?! Lulu, de posse de um balde de gasolina, tocou fogo no barco sob o olhar atônito de Geraldo, que tentou evitar que outros barcos tivessem o mesmo fim. A decepção de Seu Fredy foi grande. Passou a ser um homem taciturno e ensimesmado. Comprou uma bicicleta para andar pelas ruas de Ará, mas esta teve o mesmo fim do barco. Lulu, com raiva, de posse de uma marreta, quebrou-a, deixando-a em pedaços. Um processo galopante de depressão tomou conta de Seu Fredy. Não saía mais de casa e dormia no quintal, até que um dia, ao sair do banheiro, uma dor repentina e violenta tomou conta do seu peito se estendendo até o braço esquerdo. Não teve tempo nem de pedir socorro a Lulu ou, quem sabe, não quis. E partiu ali mesmo, e exatamente cinco meses após a festa de despedida da Petrobrás. Segundo o diagnóstico de uma vizinha fuxiqueira, ele morreu de desgosto.

- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de 21/01/2017, Caderno A-7. 

- As fotos foram retirados do Google.

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