Aracaju/Se,

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

A dúvida, a ética e a fé

Artigo pessoal
A dúvida, a ética e a fé
Clóvis Barbosa 


Já se disse que Ética é a capacidade que se tem para distinguir o bom do mau. Ela não estabelece regras de conduta cogentes, como a Moral e o Direito, mas tenta justificá-las. Entretanto, também, pode ser afirmado que o “ser ético” é necessariamente ter uma vida coerente amparada por normas morais. Se assim se entende, pode a , contradizer-se com a ética, considerando que aquela se caracteriza pela idéia firme de que aquilo que se pensa ou se está praticando é a absoluta verdade, sem qualquer comprovação ou critério científico de verificação? A Dúvida pode conviver com a Ética? E com a ? Com a Ética até que sim, mas com a é impossível. Eu posso ter dúvidas de que algo que estou fazendo é correto ou não, mesmo sendo munido de todas as ferramentas de reflexão e de todo conhecimento científico. Com a é diferente, eu creio e pronto! E não se diga que a é uma exclusividade de quem tem Ética. Não é, pois, nem sempre, quem é ético tem fé, ou quem tem fé é ético! É com fundamento nessas premissas que trago para discussão dois episódios controvertidos entre os filósofos, ambos envolvendo o sacrifício de filhos, o primeiro de natureza bíblica, vivido por Abraão e seu filho Isaac, outro de cunho mitológico, envolvendo Agamenon e sua bela filha Ifigênia.

Sobre Abraão, a história está no Livro do Gênesis. Depois de Abraão aliar-se a Abimelec e ir residir na terra dos filisteus, Deus o pôs à prova. Chamando-o, disse: “Abraão!” E ele respondeu: “Aqui estou”, e Deus disse: “Toma teu filho único, Isaac, a quem tanto amas, dirige-te à terra de Moriá e oferece-o ali em holocausto sobre o monte que eu te indicar”. Abraão segue rigorosamente as instruções. Sequer levou em consideração a perquirição do seu filho que viu a lenha e o fogo, mas não via o cordeiro para o holocausto. No lugar indicado por Deus, após amarrar o seu filho e o colocar sobre a lenha do altar, desembainhou a faca a fim de matá-lo quando, repentinamente, ouve um grito de um anjo do Senhor, que lhe disse: “Não estendas a mão contra o menino e não lhe faças mal algum. Agora sei que temes a Deus, pois não me recusaste teu único filho”. O crime foi evitado. Isaac foi substituído por um cordeiro. Essa provação divina ou teste espiritual, ainda hoje é objeto de aplausos, de louvação, não somente nos púlpitos como em toda a parte, como dito por Kierkegaard (1813-1855), filósofo dinamarquês, pela grandeza do ato de Abraão, que se dispôs a cumprir tarefa tão repugnante. Não é sem razão que Abraão é cognominado o “pai da fé”.

O episódio Agamenon: Irrompeu-se na Grécia uma epidemia da peste, onde os homens adoeciam e morriam, ficando os médicos impotentes com o seu alastramento. Agamenon mandou chamar o pontífice de Apolo, Calcas, acreditando que a doença teria sido enviada por um deus irritado com alguma ofensa ou erro praticado contra ele. Depois de algumas cerimônias religiosas, Calcas comunicou a Agamenon que a peste foi enviada pela deusa Ártemis, irmã de Apolo, que não gostou do seu ato quando de uma caçada na floresta, tendo ali abatido uma corça branca, animal este que era consagrado àquela deusa que o amava com ternura. A situação da epidemia seria resolvida se Agamenon sacrificasse em seu altar a sua filha primogênita, a princesa Ifigênia. Irritado com tal proposta, Agamenon convocou o Conselho - Menelau, Ulisses, Diomedes, o sábio Nestor de Pilos e Ajax, filho de Telamon - e transmitiu-lhes a situação. Depois de muita discussão, Agamenon concordou em sacrificar a sua filha. No momento em que a faca tocava o seu pescoço, ouviu-se um grito de espanto. A faca desaparecia das mãos de Calcas, surgindo uma corça alva debatendo-se em agonia. No último momento, Ártemis condoeu-se com a beleza de Ifigênia. E ela foi salva.
Os dois episódios têm tratamentos diferenciados, um considerado abjeto, outro heróico, pelo menos na visão de Kierkegaard,  que não procura justificativas para o ato insano, abjeto, de Abraão. Passa o sarrafo até naqueles que o defendem. E levanta uma questão: até que ponto os defensores do ato de Abraão fazem idéia do que estão falando? E dá o exemplo da reação de um padre no caso de um fiel seguir o mesmo caminho de Abraão. O padre iria até o homem, munido de toda a sua dignidade eclesiástica, e berraria: “Homem desprezível, abjeção da sociedade, que diabo o possuiu para que desejasse assassinar seu filho?”. Seria ético o padre ter este comportamento quando ele próprio exalta o ato de Abraão como de grandeza? Aí está o grande abismo que separa a ética da religião. O filósofo dinamarquês vai mais longe e coloca na balança o exemplo de Abraão com o de Agamenon, que sacrificou a sua filha Ifigênia pelo bem do Estado. Neste caso, o seu ato estaria envolto numa ética universal, ou seja, “o herói trágico troca o certo pelo que está ainda mais certo, e o observador o vê com confiança”. Kant (1724-1804), em Crítica da Razão Prática, afirma que as passagens da Bíblia que parecem transgredir os limites da credibilidade racional deviam ser interpretadas de modo alegórico e não literal.

(*) – Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 2 e 3 de outubro de 2011, Caderno A, pág. 7.

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