Aracaju/Se,

terça-feira, 20 de março de 2012

Honra teu pai

Artigo pessoal
Honra teu pai
Clóvis Barbosa
Mais ou menos em setembro deste ano mandei um twitter me solidarizando com os refugiados de Badbaado, o maior campo de refugiados de Mogadício, capital da Somália, onde bebês de poucos meses de nascidos, em pele e osso, olhos vidrados, com moscas passeando sobre os seus rostos cansados pela fraqueza causada pela fome, não lhes davam força, sequer, para chorar. A África, hoje, possui 10 milhões de famintos, distribuídos em Djibuti (120 mil), Etiópia (4, 6 milhões), Quênia (2,4 milhões) e Somália (2,8 milhões). Lembrei-me daquele poema de autor desconhecido: “De cada criança morta, nascerá um fuzil com olhos que terminará por lhe achar o coração”. Os jornais nos informam que um cidadão, Iman Abdi Noono, de 60 anos, caminhou com a família por dez dias para escapar da seca que matou todo o seu rebanho garantidor da sua subsistência. Seguiu em direção à capital da Somália em busca de alimentos e na caminhada viu seis dos nove filhos morrerem de fome. “Carreguei o último nas costas e achei que iria salvá-lo. Mas ele morreu pouco depois de chegarmos”. A Somália, hoje, tem uma população de 9,9 milhões de habitantes, está localizada no chifre da África, mortalidade infantil atinge 105,6 mortes a cada mil nascidos vivos, o saneamento básico atinge apenas 23% da população e a renda per capita é de US$ 600. Há uma insana disputa armada que rachou o país ao meio, de um lado um governo incapaz, de outro o fanatismo da milícia islâmica Al Shabab. Para piorar, os problemas climáticos ligados à seca e que assola o país de norte a sul sem qualquer perspectiva de solução em curto prazo. Grito com Castro Alves, evocando o porquê de tanto sofrimento durante vários séculos: “Deus! Ó Deus onde estás que não respondes? / Em que mundo, em qu’estrela tu te escondes / Embuçado nos céus? / Há dois mil anos te mandei meu grito, / Que embalde desde então corre o infinito.../ Onde estás, Senhor Deus?”.
 
Somos filhos da África. Para aqui vieram os nossos antepassados, como escravos para, com sua força de trabalho, submeter-se a uma exploração do homem pelo homem. Ao chegar ao Brasil, eram açoitados de forma severa para, de logo, acostumar-se no contexto da opressão institucionalizada. Foi tripudiado, espancado, explorado, animalizado em sua dignidade e autoestima. A chibata era o símbolo do instrumento de tortura a ser aplicada àqueles que não se conformavam com o establishment. Pois bem, um engraçadinho, pelo twitter, me mandou às favas, dizendo que eu deveria era me solidarizar com os pobres e oprimidos daqui e não querer ser um pai de povo que eu sequer conhecia. O que fazer! A mediocridade e a insensibilidade são irmãs gêmeas, até porque o que a não ficção complica, a ficção elucida com muita clareza. Ou será o contrário? A verdade é que o meu seguidor de twitter desconhece o que foi a carnificina escravocrata em nosso país. Esquece, por exemplo, que o Brasil foi o campeão mundial da escravidão moderna, chegando ao ponto, em 1820, dois anos antes da Independência, ter uma população onde dois terços eram de escravos. Só nesse ano, desembarcaram no Rio de Janeiro 700 mil africanos. Documentos demonstram que o Rio de Janeiro foi a maior cidade escravista do mundo desde a Roma antiga. E para arrematar: De 1600 a 1850, 4,5 milhões de escravos vieram para o Brasil, dez vezes mais, por exemplo, a quantidade levada para América do Norte. Quer saber mais? Compre e leia “O Navio Negreiro – Uma História Humana”, de Marcus Rediker, professor de história marítima da Universidade de Pittsburg (EUA), tradução de Luciano Machado, Companhia das Letras, 464 págs. Mas, interessante, gostei do epíteto da vontade que supostamente eu teria de pretender ser o pai do povo somaliano, como dito pelo twitteiro. Quem me dera! Mas estou satisfeito por ser filho da África e, seja ela pai ou mãe, é minha pretensão honrá-la.
Salvatore “Bill” Bonanno. Quando morreu, nas primeiras horas do primeiro dia do ano de 2008, o Los Angeles Times colocou sobre o texto do obituário um subtítulo com uma citação do falecido: “Quando eu acordava de manhã, minha meta era viver até o por do sol. E quando a noite caía, minha segunda meta era viver até o amanhecer”. Não, não, Bill Bonanno não era nenhum intelectual! Ele era mafioso, e filho de um dos maiores mafiosos dos EUA, Joseph “Joe Bananas” Bonanno, que controlava uma das chamadas Cinco Famílias de Nova York. Sim, E daí? É porque assisti nesses dias os informativos televisivos. Em um, uma Delegada de Polícia falava de sua pretensão em acabar com a venda de objetos falsificados, como CDs e DVDs. Em outro informativo, toda montagem de uma parafernália para prender um bicheiro conhecido. A gravidade dos crimes cometidos? No primeiro caso, uma Lei, de n° 10.695, de julho de 2003, que deu nova redação ao art. 184 do Código Penal trata da criminalização da conduta de quem viola direitos autorais: a pirataria. As penas variam de três meses de detenção a quatro anos de reclusão. Como se vê, pirataria dá cadeia. No outro caso, vem a Contravenção Penal tipificada como jogo de azar, uma prática centenária no Brasil e que emprega, informalmente, milhares de pessoas. Também é verdade que a policia, o Ministério Público, o Juiz ou quem quer que seja não extorquem e tampouco acusam os cidadãos que subsistem da venda de um CD ou DVD ou realizando apostas para o jogo do bicho. Quem faz isso é a lei. Mas a lei é menor do que o ordenamento jurídico como um todo considerado. Na Alemanha, por exemplo, tutelou-se a teoria social da ação. Para ela, ação “é a conduta socialmente relevante”. Pergunta-se: é socialmente relevante a conduta de quem pirateia ou realiza apostas para sobreviver com dignidade, como quer a declaração universal dos direitos do homem?  É correto exigir conduta diversa dessa pessoa num pais onde as oportunidades de trabalho são escassas?

Pulemos para o elogiado sistema americano e sua relação com a máfia e seus dirigentes. Gay Talese é jornalista, tendo trabalhado no New York Times e na revista Esquire.  Autor, dentre outras obras, de A Mulher do próximo, Fama e anonimato e Vida de escritor. Lançado em 1971, Honra teu pai, originalmente publicado no Brasil com o nome de Honrados Mafiosos, trata do mundo da máfia siciliana centrada nos EUA. Fala da ascensão e decadência de uma família de mafiosos e sua relação com o status quo americano. Fala da Sicília, uma ilha italiana cuja história tumultuada obedeceu a diversas leis ligadas aos seus conquistadores, como a grega, romana, árabe, godo, normando, angevino, aragonês, enfim, todo mundo que lhe invadia introduzia um novo arcabouço jurídico, e como sempre, privilegiando os poderosos. Fala de corrupção do aparelho policial e de suas relações ignominiosas com a máfia, ora a combatendo, ora lhe extorquindo, ora utilizando-se da sua existência para exigir privilégios do poder estatal. Mas não me interessa a podridão do sistema com as suas hipocrisias. Mas, a relação pai/filho entre Joe e Bill. Um jornalista do New York Times perquiriu de Bill Bonanno quem ele era e porque, nascido na América, diferentemente da geração dos antigos mafiosos, não optou pela sua integração à sociedade, optando por manter-se nos negócios escusos do pai. Ele não respondeu como Gasset e Gasset: “Eu sou eu e minhas circunstâncias”. Disse apenas que foram as “circunstâncias“ e o modelo que representava seu pai para ele. Deus nos exorta a honrar nosso Pai. Tanto valoriza que incluiu esse princípio nos 10 mandamentos (Êxodo 20:12) e no Novo Testamento: “Vós, filhos, sede obedientes a vossos pais no Senhor, porque isto é justo. Honra a teu pai e tua mãe, que é o primeiro mandamento com promessa, para que te vá bem, e vivas muito tempo sobre a terra (Efésios 6:1-3).

(*) – Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 25 e 26 de dezembro de 2011, Caderno A, pág. 7.

Um comentário:

  1. Muito bom esse texto que pena a fome existe para os esquecidos. Boa tarde.

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