Aracaju/Se,

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

O colecionador de ossos

Artigo pessoal
O colecionador de ossos
Clóvis Barbosa

 
Quando ocorre um homicídio nos EUA, a primeira coisa de que o policial tem que se lembrar é de uma palavra: ADAPTAR. A: apanhar ou prender um criminoso conhecido; D: deter testemunhas ou suspeitos relevantes; A: analisar a cena do crime; P: proteger o local do evento; etc., etc., etc. Segundo os especialistas, uma equipe multidisciplinar deve comparecer ao local da ocorrência do fato, pelo menos um coordenador, com funções de chefia da equipe, um responsável pela lofoscopia, um pela fotografia e esboço da cena, um para se encarregar do recolhimento, acondicionando e transportando os vestígios, um representante da promotoria e um perito médico-legal.
 
Essa equipe se encarregará de tomar todas as providências que visem elucidar o mais breve possível a autoria do delito. E essa proteção do local da cena do crime tem um objetivo científico para os especialistas, a de que o morto fala através das circunstâncias em que o seu corpo se encontra. Phillip Noyce, que dirigiu o filme “O colecionador de ossos” (com Denzel Washington e a bela Angelina Jolie), e Jeffery Deaver, autor do livro, nos mostra toda a parafernália que envolve a análise e investigação de um crime, principalmente o que é retratado no referido enredo literário-cinematográfico. Tratava-se, ali, de um criminoso impiedoso (recém-saído do sistema penitenciário), que matava suas vítimas com requintes de tortura e crueldade, mutilando-as e espalhando-as pelas ruas da cidade de Nova York, para vingar-se do perito cuja atuação o pôs atrás das grades.

Vejam que dado chamativo. Dostoiévski escreveu, em 1861, “Recordações da Casa dos Mortos”, obra reconhecida como uma verdadeira obra-prima da literatura mundial. O seu personagem principal é Alieksandr Pietróvitch Gorjantchikov, um professor que vivia numa pequena cidade da Sibéria, dando aulas de reforço aos jovens. Antes, ele havia cumprido pena de prisão por ter assassinado a esposa um ano depois do casamento, movido por ciúmes, entregando-se após o crime, atitude que atenuou a sua pena. Dostoiévski apaixonou-se pela figura taciturna do professor e ex-presidiário. Tentou aproximar-se, sendo repelido. Ao retornar, meses depois, à Sibéria, tomou conhecimento da morte do velho rabugento. Ao visitar o alojamento em que ele viveu foi presenteado pela proprietária do local com uma cesta cheia de papéis velhos pertencentes ao seu antigo inquilino. Foi nesta documentação que Dostoiévski descobriu a experiência vivida pelo seu personagem, durante o período em que esteve preso numa penitenciária de segunda categoria, onde as instalações eram precárias, a alimentação deficiente, o frio insuportável, as dificuldades de relações entre pessoas de várias castas sociais, a corrupção da guarda penitenciária, enfim, uma verdadeira obra voltada para a psicologia criminal e para a máxima de que a prisão não cura, corrompe.
 
Na verdade, uma experiência inesquecível para a sua vida, ao ponto de dizer que “Não resta dúvida de que o tão gabado regime de penitenciária oferece resultados falsos, meramente aparentes. Esgota a capacidade humana, desfibra a alma, avilta, caleja e só oficiosamente faz do detento ‘remido’ um modelo de sistemas regeneradores”. Mas, na verdade, a figura do professor Alieksandr Pietróvitch Gorjantchikov é puramente ficcional. A experiência na penitenciária foi vivida pelo próprio Dostoiévski, preso em abril de 1849, vendo-se condenado à morte por fuzilamento em dezembro, acusado de envolvimento na conspiração do revolucionário Mikhael Petrachévski, que objetivava assassinar o Czar Nicolau I. Ele sempre negou a sua participação no evento, embora reconhecesse que era um opositor do regime totalitário e feudal czariano. Na época da execução da pena, já experimentando a sensação da morte que se aproximava, após todos os rituais que antecedem aquele momento, foi comunicado que a pena foi substituída por prisão e trabalhos forçados na Sibéria. Dostoiévski, pois, foi o próprio protagonista daquela viagem ao inferno. E ele fala do dia-a-dia na prisão, numa autoanálise: “Mas o tempo flui e dei em me habituar gradativamente. À medida que os dias passavam, as realidades cotidianas iam me irritando menos. Os meus olhos, por assim dizer, iam-se habituando aos acontecimentos, ao ambiente e aos homens”.
 
Recordações da Casa dos Mortos é uma obra penetrante. Na prisão, ele fala da esperança ao dizer: “Quando o sol brilhava, a gente pensava na liberdade muito mais intensamente do que nos dias cinzentos do outono e nas horas opacas do inverno”. Sobre o sofrimento, as atrocidades praticadas pelos servidores do presídio, as condições desumanas, o uso de grilhões de ferro, inclusive nos doentes moribundos, os castigos tortuosos, a vida animalesca, ele fala: “É atroz, dá a impressão de fogo aplicado demoradamente na pele. Assa as costas como uma grelha”. O livro é um libelo contra o fracassado sistema prisional no mundo, e que permanece até hoje, século XXI, onde a prisão continua sem ressocializar o preso, transformando-se cada vez mais numa universidade do crime. Aqui em Dostoiévski, uma história contada com base na experiência vivida. Acolá, em “O colecionador de ossos”, a ficção, onde um assassino em série brinca com a polícia num jogo de gato e rato, dando pistas do próximo crime a ser praticado e da possibilidade de evitá-lo. Mas o importante em o colecionador, no livro, é a aula de investigação criminal que se dá, com todas as suas engrenagens científicas, como, por exemplo, o Princípio da Troca de Locard, que sustenta que há sempre uma troca de prova material entre o criminoso e a cena do crime ou a vítima, por mais minúscula ou difícil de detectar que possa ser essa prova. Em suma: enquanto os presos são amarrados ao silêncio, os mortos gritam, embora poucos consigam ouvi-los. Nesse sentido é que o sistema perdeu os sentidos. Nem quebra o silêncio do cárcere e, tampouco, se preocupa em escutar o sussurro dos mortos. Por isso, mais presos tornam-se doutores em silenciar a eficácia da polícia (quando saem da cadeia, com mestrado e doutorado na arte do terror) e mais mortos gritam à toa. A polícia não sabe interpretar-lhes as vozes afônicas. A polícia também está tornando-se uma surda colecionadora de ossos que não soube se ADAPTAR à visão humanista do combate ao crime.

(*) – Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE. Edição de domingo e segunda-feira, 18 e 19 de março de 2012, Caderno A, página 7.

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