segunda-feira, 7 de abril de 2014
A insustentável leveza da punição
Clóvis Barbosa
No momento
em que o Governo do Estado de Sergipe se prepara para reeditar as obras
completas do filósofo, poeta, cientista, crítico e jurista sergipano Tobias
Barreto, integrante da Escola do Recife (movimento de grande força, que teve
nas teorias filosóficas do monismo e do evolucionismo europeu a sua base),
colocamo-nos diante de mais uma oportunidade de apresentar às novas gerações a
imagem de um dos intelectuais mais festejados do nosso País. Apenas para que se
tenha uma ideia, um dos maiores penalistas do mundo, Luis Jiménes de Asua, na
obra Tratado de Derecho Penal, diz
que “Tobias Barreto aceitou com entusiasmo a filosofia positivista e, em
biologia, acatou as teses darwinianas; porém, não deixou de censurar os
‘positivistas’ italianos. Barreto foi o primeiro crítico brasileiro de
Lombroso. Menos poderia dizer-se que foi um ‘clássico’, como o prova a sua
injustificada antipatia a Francesco Carrara. Ao seu juízo, o delito era produto
de fatores individuais e sociais”.
Com efeito,
voltei a conversar com Tobias através de uma de suas obras, Estudos de Direito, volume II. O livro traz uma biobibliografia assinada pelo
intelectual Luiz Antônio Barreto, também de Sergipe, uma introdução sobre o
tema central, o Direito Penal, de
autoria do professor Everardo Luna, A
Crítica e o Pensamento tobiático sobre Direito Penal, abordando temas como Menores e Loucos, Prolegômenos do Estudo do Direito Criminal, Comentário Teórico e Crítico ao Código Criminal Brasileiro, Delitos por Omissão, Ensaio sobre a Tentativa em Matéria Criminal,
Mandato Criminal e A Co-Delinquência e seus Efeitos na Praxe
Processual. Finalmente, a obra é concluída com o teor de uma conferência do
festejado criminalista pernambucano Aníbal Bruno, com o título Tobias Barreto Criminalista, proferida
na Faculdade de Direito do Recife durante as comemorações do primeiro
centenário de seu nascimento e um artigo, Tobias
e o Romantismo Penal, de autoria do também pernambucano Virgílio Campos.
Nos seus
cinquenta anos de vida, de 1839 a 1889, Tobias teve uma existência agitada,
participativa e polêmica, principalmente a partir de 1862, quando ingressou
como estudante na Faculdade de Direito do Recife. Não tinha receio de colocar suas
posições e não fugia do debate, deixando ali sua marca, tanto que até hoje a
Faculdade de Direito do Recife é chamada “A Casa de Tobias”. Foi um
revolucionário em sua época, talvez pela dinâmica de sua curiosidade, sempre
latente no agudo poder de assimilação e dominação dos vários temas explorados
pela sua inteligência. Viveu no século da revolução industrial, onde a
economia, essencialmente agrária e artesanal, passou para um modelo
eminentemente transformador. Eram tempos de grandes descobertas, locomotivas e
navios a vapor, do fonógrafo, do raio-x, do aparelho cinematográfico, do avanço
da metalurgia, da eletricidade, da indústria química, do motor à explosão e da
energia nuclear. Guerras, movimentos de independência nas colônias espanholas
sul-americanas, efervescência no mundo artístico, político e filosófico eram
acontecimentos permanentes e diuturnos à época. O romantismo atingia o seu
apogeu, transformando a visão do mundo, até então dominada pelo racionalismo e
iluminismo. O indivíduo passava a ser o centro, valorizando-se a sua força
criativa e a imaginação popular.
O Brasil
também passava por transformações. Deixara de ser colônia para ser
independente. A monarquia esfacelava-se paulatinamente. Os movimentos sociais
pululavam contra o regime escravocrata. O País passava a criar o seu arcabouço
jurídico, tendo por princípio a autonomia do indivíduo como titular de
direitos. Assim, surgiram os principais diplomas jurídicos, destacando-se a
Constituição de 1824 e o Código Criminal Imperial. Sobre este último, Tobias
abordou várias questões, como a subjetividade do instituto da inimputabilidade
e sua consequente exclusão de responsabilidade penal. Esse diploma estabelecia
que o menor de 14 anos não era considerado criminoso, desde que não tivesse agido
com o devido discernimento. No seu
ensaio sobre Menores e Loucos, ele
questiona o uso dessa palavra como critério suficientemente capacitado para
separar o menor inculpável do culpável. Era draconiana a metodologia aplicada
pelo Código, pois dava ao juiz o poder de avaliar, a seu talante, se houve ou
não discernimento do adolescente no
momento do cometimento de determinada infração penal.
O Código
Criminal de 1830 recebe de Tobias um alentado estudo crítico. Foi, talvez, o
primeiro doutrinador daquela legislação, tal como aborda os aspectos
filosóficos e legais da conceituação do crime, a relatividade da lei penal no
tempo, no espaço e na condição das pessoas, dos crimes comissivos praticados
por omissão, conceito de imputabilidade, dolo e suas espécies, culpa e seus
graus, caso fortuito, erro de direito e de fato (institutos hoje denominados
erro de tipo e erro de proibição), atos preparatórios para consecução do crime
(iter criminis), autoria e co-autoria, concorrência de crimes, reincidência,
agravantes e atenuantes, enfim, as suas ideias tinham o apoio da doutrina
alemã, à época desconhecida da inteligência jurídica brasileira.
Tobias foi
crítico ferrenho da tese de Cesare Lombroso, segundo a qual haveria um
criminoso nato, sustentando a identificação do delinquente a partir de
características individuais, tanto físicas quanto psicológicas e até mesmo
biológicas (a exemplo do fundo epiléptico e da lesão cerebral).
Para ele, o
caráter, como um capital herdado, pode modificar-se pelo próprio trabalho do
indivíduo, pela ação das circunstâncias, pela influência do meio. E adianta que
o delito, como fato natural, está sujeito a outras leis que não as leis da
liberdade, isto não quer dizer que o direito deve deixar de interpor-se como um
meio de corrigir a natureza. Numa época que se desconhecia o instituto da
medida de segurança, dá, de logo, para se reconhecer os méritos de Tobias como
um grande criminalista.
Apesar do
talento e da genialidade, Tobias morreu na miséria, socorrido pelos amigos,
alunos e admiradores. Mas deixou no mais alto pedestal o nome do pequeno Estado
de Sergipe, seu berço, sua origem, sua raiz.
Estudos de Direito, volume II, é uma obra atualíssima,
imprescindível aos operadores do mundo jurídico, principalmente para que se
entenda a sempre moderna concepção de que a pena precisa ser vislumbrada dentro
de um contexto eternizado no apanágio literário de Dostoiévski: Crime e
Castigo. Delinquir poderia até ser uma opção. Castigar, todavia, era a
finalidade da pena. Sem hipocrisia. Como deve soar o olhar de um verdadeiro
criminalista em sua essência.
1.
Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de
domingo e segunda-feira, 16 e 17 de setembro de 2012, Caderno B, página 9.
2.
Postado no blog Primeira Mão
no dia 16 de setembro de 2012, às 11:11 horas:
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Caro Clóvis, seu artigo dá a dimensão da grandeza de Tobias Barreto. O textos do blog são ricos em informação, demonstrando a sua extensa leitura, e ao mesmo tempo leves e agradáveis de ler. Parabéns! Paulo Guedes Fontes
ResponderExcluir