Aracaju/Se,

segunda-feira, 12 de maio de 2014

A solidão dos moribundos

Artigo pessoal

A solidão dos moribundos

(ou ensaio sobre a desencarnação política)
Clóvis Barbosa
 

É insólito exigir ética dos mortos. Mas há aqueles que, mesmo tendo experimentado uma morte desonrosa, crêem que podem impor seu arquétipo de honra aos vivos. Quando Roma protagonizou o império, os gladiadores, antes de darem início ao embate, veneravam o pontifex maximus com a seguinte declaração: “morituri te salutant” (os que morrerão te saúdam). Isso consubstanciava um duplo significado. Em primeiro lugar, a aceitação da morte honrada, da morte vitoriosa, porquanto desprovida de angústia. Ter medo da morte, para um gladiador, apontava para a mais expressiva e ignominiosa manifestação do ultraje. Em segundo lugar, o reconhecimento da “imortalidade” do imperador. Nesse ponto, todavia, uma tolice. O professor Francisco Carlos da Fonseca, doutor em comunicação pela Federal do Rio de Janeiro, até brinca, afirmando que o ideal seria que os gladiadores dissessem: “morituri moriturum salutant” (aqueles que morrerão saúdam aquele que morrerá).
 
Pelo menos, os gladiadores tinham ética. Ética que falta a alguns dos políticos hodiernos. Políticos, tal qual gladiadores, também “morrem”, não na acepção denotativa da palavra, mas na epiderme conotativa que esse termo encobre. A derrota, numa eleição, traduz o repúdio, ainda que momentâneo, da população. Esse repúdio faz com que, por certo tempo, o derrotado soçobre no esquecimento. E o esquecimento é, na política, a antessala da morte. A propósito disso, na mitologia grega, o deus da morte, Thánatos (θάνατος), tinha como irmão gêmeo Hipnos, o deus do sono. Assim, morrer é algo além de dormir. E alguns políticos, quando dormem, dão sossego àqueles que estão acordados, ou seja, vivos, digladiando em prol de quem os aclamou: o povo. Mas há quem morra e não durma. Essa é a melhor concepção de sonambulismo. O mais desagradável, contudo, é que não só perambulam, como acabam por apoquentar os vivos. São almas penadas.
 
As piores almas penadas, no entanto, são aquelas que cobram dos vivos aquilo que não fizeram antes de morrer. Essa alcatéia, que superlota o anfiteatro da demagogia, se esquece do art. 37, § 5º, da CF, onde a carta da república reza que não há prazo prescricional para a obrigação de o servidor ímprobo ressarcir o erário. Numa palavra, a responsabilidade do servidor público ou do agente político desonesto é ultra-ativa, vai além do seu mandato (ou além-túmulo). Aqui é que o episódio ganha o diapasão da comédia: reclamar de quem está no poder aquilo que foi deixado por quem já expirou. Mas a culpa não é só dos defuntos. O legislador também carreia sua parcela de expiação. A rigor, foram quase noventa anos de espera pela codificação do instituto da boa-fé objetiva. Isso, o código civil de 1916 não conhecia, embora o código alemão de 1900 (bürgeliches gesetzbuch) já concebesse tal dogmática. Fazer o quê? Na Alemanha, alguns dos que se profissionalizam na política (aqui no Brasil) também já estariam encarcerados.
 
Com efeito, boa-fé subjetiva importa um como que de espectro de consciência mal projetado (uma visão equivocada do mundo). Um erro no tocante à avaliação. Assim, por exemplo, quem casa com uma pessoa já casada, sem conhecer tal impedimento, fá-lo de boa-fé. Do contrário, agiria de má-fé. Veja-se, pois, que boa-fé subjetiva tem oposto: má-fé. O Direito brasileiro, porém, até o advento do código civil de 2002, não tinha um parâmetro cientificamente robusto para vislumbrar a boa-fé objetiva. Mas por que “objetiva”? Elementar. Porque ela é normativa. Não depende da visão do sujeito, mas dos preceitos já positivados na ordem jurídica. Por exemplo, o laboratório que produz uma dada substância medicamentosa deve, necessariamente, pôr, na bula do produto, todos os dados que esclareçam o consumidor acerca dos mecanismos de atuação do remédio. Isso é o que a doutrina chama “dever de informação”, algo afeito à “função ativa” da boa-fé objetiva. Tal obrigação não depende da consciência do fornecedor. É algo que se extrai da própria lei. Aliás, o código civil de 2002, no art. 113, apregoa que todos os negócios jurídicos devem vir à tona consoante as regras da boa-fé objetiva.
Mas não é a “função ativa” da boa-fé objetiva que interessa nas diversas conjunturas. É a sua “função reativa”, vale dizer, de defesa. É que alguns políticos, pré-cambrianos por natureza, mortos pela História, mas desenterrados pela infâmia, condenam a gestão que não mais lhes pertencem, fruto de uma derrota eleitoral, atribuindo-lhe responsabilidades que ela não detém. Isso lembra o assassinato de Júlio César. Interessante que a morte do “ditador” romano, no meado de março, também guarda relação com a boa-fé objetiva. Ora, foi dito alhures que a boa-fé subjetiva, ou “boa-fé crença” (gutten glauben) opõe-se à má-fé. Por outro lado, a boa-fé objetiva, ou “boa-fé lealdade” (treu und glauben) não tem antônimo. Falou-se, ademais, que a boa-fé objetiva tem funções, a exemplo da “ativa” e da “reativa”. Explicou-se um aspecto da função ativa. É chegado, portanto, o momento de dissecar a função reativa da boa-fé objetiva. Conseqüentemente, necessário faz-se compreender os institutos do venire, do dolo agit e do tu quoque.
 
Venire (venire contra factum proprium) quer dizer que, no campo da boa-fé, as pessoas devem portar-se de maneira homogênea. Se o locador sempre aceitou receber o aluguel no domicílio do locatário, não lhe é dado mudar, inopinadamente, seu procedimento. Caso o fizesse, o devedor poderia, muito bem, valer-se do venire. Já o dolo agit (dolo agit qui petit quod statim redditurus est) busca castigar aquele que traça seus passos, guiado pela sede de emulação. Exemplo clássico: aquele que cobra dívida já paga. Qual a punição? Pagar em dobro o que está cobrando. Finalmente, o tu quoque. Esse instituto é, certamente, o que mais interessa a um governo atacado por outro que foi derrotado nas urnas. Tu quoque é a forma reduzida da célebre frase que Júlio César proferiu, segundos antes de morrer, caído aos pés da estátua de Pompeu: “Tu quoque, Brute, filii mei” (até tu, Bruto, meu filho?). Tu quoque, desse modo, quer retratar que, na ordem pátria, ninguém pode cobrar de outrem aquilo que ele mesmo não seguiu à risca, conforme leciona a cátedra de Immanuel Kant, para quem somente pode cobrar ética quem ética tem.
 
Mas tudo bem. Norbert Elias, em A Solidão dos Moribundos, preconiza a preponderância de uma credulidade infame na “imortalidade”. Assim, os moribundos repelem a morte como fenômeno, supondo que voltarão da tumba. Nesse sentido, que fique um recado para os mortos: se houver ressurreição, eles terão que aguardar, no mínimo, mais quatro anos. Quanto ao governo, quando escutar cobranças de “além-túmulo”, sabendo de onde elas vêm, basta responder: Tu quoque? Ou, se desejar uma linguagem mais poética, é apropriado recitar, para os vencidos, um trecho daquele belo soneto de Augusto dos Anjos (vozes da morte): “Ah! Esta noite é a noite dos vencidos! E a podridão, meu velho! E essa futura ultrafatalidade de ossatura a que nos acharemos reduzidos!”.

– Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-Se, edição de 14 e 15 de outubro de 2012, página 7.

– Postado no Blog Primeira Mão em 14 de outubro de 2012, às 18:33:40, site:


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