Aracaju/Se,

domingo, 17 de maio de 2015

A Teoria dos Poderes Implícitos

Artigo Pessoal

A Teoria dos Poderes Implícitos
Clóvis Barbosa
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Na quinzena passada o pau quebrou na minha moleira. Tudo por causa de uma decisão da minha lavra no Tribunal de Contas do Estado. Havia, em medida cautelar, determinado a suspensão do Concurso da Deso, empresa responsável pelo abastecimento d’água na maioria dos municípios sergipanos. A questão foi objeto de discussão em vários setores da sociedade: redações da mídia, escritórios de advocacia, corredores dos três poderes e rede social. Repentinamente, Aracaju se transformou na capital da discussão de teses jurídicas, nela participando profissionais da área e leigos, todos emitindo as mais estapafúrdias opiniões. Para uns, a emissão de medida cautelar é privativa do poder judiciário; para outros, o Tribunal de Contas é meramente um órgão auxiliar do poder legislativo e subordinado à Assembléia Legislativa; acolá, as competências da corte de contas são de extração direta e imediatamente constitucional e não legal; suas competências são exaustivas e não meramente exemplificativas. Pois bem! De início, devo esclarecer que a presente discussão causa em mim sentimentos colidentes, quais sejam, a inquietude e a tranquilidade. A inquietude advém do fato de que, confirmado o entendimento desses segmentos, estaria o Tribunal minado de sua importância fundamental no campo do controle externo, estremecendo as bases do fortalecimento de sua atuação institucional conquistada ao longo dos anos, desde a sua idealização ainda no governo provisório de Marechal Deodoro da Fonseca. Já a tranquilidade está alicerçada no amparo que o posicionamento a seguir delineado encontra no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça e, mais que isso, na própria Constituição Federal e nos poderes e competências por ela implicitamente atribuídos às Cortes de Contas. Explico: É que a ideia de um órgão fiscalizador em nosso país, com o objetivo de examinar, revisar e julgar todas as operações orçamentárias, remonta à instalação do regime republicano, quando, por meio do Decreto n° 966-A, de 7 de novembro de 1890, restou criado o Tribunal de Contas. No dizer de Rui Barbosa, Ministro da Fazenda à época, o Governo Provisório reconheceu a urgência inadiável de reorganizar o sistema orçamentário defeituoso da República, de maneira que será necessária “a criação de um Tribunal de Contas, corpo de magistratura intermediária à administração e à legislatura, que, colocado em posição autônoma, com atribuições de revisão e julgamento, cercado de garantias – contra quaisquer ameaças, possa exercer as suas funções vitais no organismo constitucional, sem risco de converter-se em instituição de ornato aparatoso e inútil”.
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Apesar de aprovado o Decreto, a constitucionalização da Corte de Contas somente ocorreu com o advento da Constituição de 1891, que o instituiu para liquidar as contas da receita e despesa e verificar a respectiva legitimidade, antes de serem prestadas ao Congresso. De lá para cá, passadas as Cartas Políticas de 1934, 1937, 1946, 1967 e chegando à atual Constituição Republicana de 1988, a sua esfera de atuação teve um sensível alargamento em suas competências, como bem dispôs o Ministro Celso de Mello na ADIN 215 MC/PB: “(...) com superveniência da nova Constituição ampliou-se, de modo extremamente significativo, a esfera de atribuições dos Tribunais de Contas, os quais foram investidos de poderes jurídicos mais amplos, em decorrência de uma consciente opção política feita pelo legislador Constituinte, a revelar a inquestionável essencialidade dessa instituição surgida nos albores da República. A atuação dos Tribunais de Contas assume, por isso, importância fundamental no campo do controle externo e constitui como natural decorrência do fortalecimento de sua atuação institucional, tema de irrecusável relevância. Assim, o Tribunal de Contas foi, pouco a pouco, ampliando suas atribuições, transformando-se gradativamente em órgão essencial ao Estado Democrático de Direito, atuando como guardião da regular prestação de contas dos poderes da república, fiscalizando a legitimidade e economicidade na gestão dos recursos públicos. Na doutrina, existem várias teorias que classificam suas competências, dentre as quais sobressai, pela abrangência, a adotada por Maria Silvia Zanella Di Pietro, para quem “o controle externo compreende as “funções”  constitucionais de fiscalização (art. 71, incisos III, IV e VI), consulta (art. 71, inciso I), informação (art. 71, inciso VII), julgamento (art. 71, inciso II), ouvidoria (art. 74, §§ 1º e 2º), sancionatória (art. 71, inciso VIII) e corretiva (art. 71, incisos IX e X)”. Ora, por certo, o direito constitui um sistema de normas razoavelmente coerente, sem contradições, ou pelo menos dotado de critérios geralmente aceitos para a superação das antinomias que eventualmente se manifestem. Nesse sentido, a hermenêutica jurídica trabalha com um princípio basilar que advém do provérbio latim “verba cum effectu sunt accipienda”, segundo o qual a lei não contém palavras inúteis. Acerca da matéria, Alexandre Moraes afirma que "deve ser fixada a premissa de que todas as normas constitucionais desempenham uma função útil no ordenamento, sendo vedada a interpretação que lhe suprima ou diminua a finalidade".
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Em síntese, a partir de tal princípio, temos que a interpretação da norma, para atingir a sua real finalidade, deve sempre levar em consideração não apenas a disposição estanque de determinado texto, mas o conjunto, o verdadeiro espírito da Lei e de sua elaboração, pois, somente após entender tal contexto, é que se pode interpretar corretamente. É neste contexto que se questiona: já que a Carta Magna elenca de forma taxativa, e não exemplificativa, as competências das Cortes de Contas, qual o fundamento para que possam ser emitidas, por exemplo, medidas cautelares, aplicação de multas aos gestores, celebrar termos de ajustamento de gestão (TAG), apreciar em caso concreto, a constitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público Estadual e Municipal? Ora, é verdade, não há um só artigo, um só inciso, uma alínea ou um item sequer da Constituição Federal que preveja expressamente tais condutas. Então, de onde surgem tais possibilidades? Seria isto também, nas palavras de um eminente juiz “um gesto de desapreço e infidelidade constitucional”? Parece-me completamente desarrazoado pensar de tal maneira. É que a discussão que ora se propõe passa, necessariamente, pelo estudo da chamada “Teoria dos Poderes Implícitos” (Theory Implied and Inherent Powers), cuja doutrina, construída inicialmente pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América, no célebre caso McCulloch vs Maryland (1819), enfatiza que a outorga de competência expressa a determinado órgão estatal importa em deferimento implícito, a esse mesmo órgão, dos meios necessários e hábeis à integral realização dos fins que lhe foram atribuídos. Desta forma, é erro afirmar que as regras jurídicas constitucionais que versam sobre competência se interpretam sempre com restrição, pois o processo interpretativo deve apurar se há mais de um entendimento para uma mesma regra jurídica e, em se verificando tal ocorrência, adotar aquele que lhe empreste maior efetividade. Registre-se que não estamos aqui defendendo a possibilidade de atribuição de competências despropositadas e sem qualquer fundamento na Lei Maior. O que se defende, isto sim, é que a Carta Magna possui caráter de norma matriz, a partir da qual deve o legislador ordinário esmiuçar as regras gerais nela contidas. Noutro dizer, a expedição de medidas cautelares no âmbito dos Tribunais de Contas, antes de qualquer fundamento legal, decorre completa e imediatamente da sua competência constitucional para o exercício do controle externo, através da fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial.
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E nesse sentido já se pronunciou o STF, que a Corte de Contas possui legitimidade para a expedição de medidas cautelares para prevenir lesão ao erário e garantir a efetividade de suas decisões, em voto da Ministra ELLEN GRACIE. Em suma, a Corte Suprema do Judiciário entende que, se os Tribunais de Contas estão incumbidos de zelar pela fiscalização e interesse público, cabe-lhes, de igual sorte, expedir medidas cautelares necessárias a resguardar o erário e garantir a eficácia de suas futuras decisões. É a chamada Teoria dos Poderes Implícitos.

- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de 18 de agosto de 2013, domingo, Caderno A-7.

- Postado no Blog Primeira Mão, Aracaju-SE, em 18 de agosto de 2013, às 20h40min, site


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