Aracaju/Se,

sábado, 9 de junho de 2018

O Monstro da Intolerância


Opinião pessoal

O monstro da intolerância
Clóvis Barbosa
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Quem teve a oportunidade de ler “Eichmann em Jerusalém”, obra da cientista social judia Hannah Arendt, dificilmente atingirá um sono tranquilo. Ela nos fala do julgamento de Adolf Eichmann, um dos arquitetos da “solução final”, que durante o nazismo foi responsável pela deportação de milhões de judeus para os campos de extermínio. A ideia que nós tínhamos daquele oficial do terceiro reich como uma fera assustadora, brutal, medonha, sanguinária, capaz de, com as próprias mãos, extrair escalpos das vítimas, foi extirpada aos poucos do nosso pensamento. Eichmann, na verdade, não passava de um mero burocrata. Espantoso? Por que, então, outorgar a um artífice do carimbo, do clipe e do grampeador a honorável distinção emblemática de o “executor-chefe” do Estado alemão nazista? O impasse resolve-se na esfera psicológica. Psicológica? Mas por que não moral? É possível trabalhar com as duas estruturas na condução do caso. Psicologicamente, a engenharia mental de Eichmann estava mapeada segundo ângulos que se projetavam para a direção de um terreno singularmente demarcado: a psicopatia. Psicopatas não são doentes ou deficientes mentais. Doença mental é o distúrbio que afeta o elemento psíquico denominado “percepção”, a exemplo da esquizofrenia. Esquizofrênicos enxergam coisas que não existem no mundo real. Já a deficiência mental é a enfermidade que alcança o psiquismo no âmbito da “inteligência”. Por exemplo, a tríade oligofrênica: debilidade, imbecilidade e idiotia. Psicopatia, portanto, não é doença, nem deficiência. É uma condição, inata e irreversível. Ser psicopata equipara-se a ser branco, negro ou índio. Assim como um índio nasceu e morrerá índio, um psicopata nasce e morre psicopata. Essas reflexões nos impelem a traçar um paralelo entre Eichmann e outro psicopata, semelhantemente sedutor, o inglês Albert Pierrepoint, o mais famoso carrasco da Inglaterra entre os anos 1932 e 1955. Com efeito, ambos foram artesãos na escrituração da morte.
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Como registrado pela historiografia, Eichmann não estava preocupado com a justiça ou com a injustiça da execução em massa dos judeus. Sua irresignação moral partia do seguinte princípio: liquidar judeus era uma política do Estado ao qual servia. Portanto, operacionalizar o extermínio desse povo implicava tão-somente mais uma etapa da cadeia engrenada por fases matematicamente estabelecidas, a exemplo de fazer a triagem dos que iriam morrer, levá-los aos trens que os transportariam até a zona de execução, cumprir rigorosamente horários de saída e de chegada das locomotivas, conduzir os condenados a câmaras de gás e, por fim, matá-los. Na mente de Eichmann, nada disso consubstanciava crime. A logística da denominada “solução final” assumia cores semelhantes às que permeiam os armários de um escritório de contabilidade. Judeus mortos eram apenas números, vistos sem índice moral. Nesse sentido, Eichmann banalizou o mal, transformando a fattispecie numa atividade instrumental. Aniquilar judeus, para Eichmann, não era algo mau e, tampouco, bom, mas só uma instância, dentro do processo de sedimentação da filosofia nacional-socialista, de cuja implementação dependia a manutenção de seu status. Da mesma maneira que um comerciante de livros precisava vender mais compêndios para garantir o emprego, Eichmann se notabilizou como workaholic na matança de judeus para ascender na escala de respeitabilidade do establishment nazista. A essa postura, desprovida de sentimento ou valoração, vazia de compaixão, piedade ou até mesmo de raiva, Hannah Arendt chamou de “banalização do mal”. Alguém, cuja pulsação sanguínea coordene-se pela moralidade afeta à noção de bem e mal, sabe que a ação nazista foi perversa. Essa assertiva não se subordina a digressões para encontrar pálio de validade. Onde, todavia, burocratas veem a trucidação de humanos com indiferença, conferindo-lhes a envergadura de códigos de barra, o mal passa a ser corriqueiro, trivial, como resolver uma equação de álgebra.
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Na Grã-Bretanha, Pierrepoint, o legendário carrasco dos 608 enforcados, pouco se importava em matar culpados ou inocentes (vítimas de erros judiciários). Catalogava seu cemitério pessoal meticulosamente num caderno. A função que o Estado lhe deu foi a de levar delinquentes ao cadafalso. Queria cumprir seu múnus com extremo profissionalismo, procurando ser, inclusive, o mais rápido dentre os colegas de trabalho. Igualmente, banalizou a morte, disfarçando-a atrás da performance institucional. O discurso de Eichmann e Pierrepoint, de que jamais fizeram algo premeditadamente, para o bem ou para o mal, e que apenas cumpriam ordens, é a desculpa típica desses homens que se recusam a ser pessoas. É verdade que Hannah, com o seu Eichmann em Jerusalém, quis defender a tese que a monstruosidade não está na pessoa, mas no sistema e “que o perigo e o mal maior não estão na existência de mentes doentias, mas na violência sistemática que é exercida por pessoas banais”. No momento em que o homem se recusa a ser uma pessoa, ele renuncia a uma das mais importantes características da definição humana: a de ser capaz de raciocinar criticamente. Isto faz com que a humanidade percorra uma trilha cada vez mais perigosa, a do chamado extremismo. Essa incapacidade de raciocinar é o que permite que pessoas comuns cometam os atos cruéis que assistimos no dia-a-dia. No momento em que perdemos a capacidade de distinguir o bem do mal, o branco do preto, o belo do feio, nossas ações humanas tendem a ser manipuladas de forma incontrolável. Uma das grandes consequências desse nosso comportamento é o surgimento da doença da intolerância, composta pelo conjunto de ideologias e atitudes ofensivas, principalmente contra aqueles que não pensam como nós. A intolerância tem sido definida como um crime de ódio que fere a liberdade e a dignidade humanas. A última eleição presidencial e o atual período pós-eleitoral, por exemplo, têm registrado a cada dia espetáculos de intolerância jamais vistos.
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No mês de fevereiro do corrente ano, tivemos a oportunidade de assistir a uma cena estarrecedora ocorrida na lanchonete do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. O ex-ministro da Fazenda dos governos Lula e Dilma encontrava-se naquele espaço acompanhando sua esposa, a psicanalista Eliane Berger, que faz um longo tratamento de câncer. De repente, o casal começou a ser hostilizado por uma mulher, sendo apoiada por outras pessoas, aos gritos lancinantes de “Vá para o SUS!”, “safado”, “ladrão”, “fdp”. Outro caso insólito foi o da madame rica de Salvador que disse: “Os pobres, não contentes em receber o bolsa família, querem ainda ter direitos”. Esse tipo de comportamento é observado todos os dias, principalmente endereçado aos negros, homoafetivos, nordestinos. Faço minhas as palavras do teólogo Leonardo Boff, para quem um dos principais males da intolerância é o que faz suprimir a liberdade de opinião, o pluralismo, e que impõe o pensamento único, citando como exemplo o atentado ao Charles Hebdo, em Paris. Para Boff, “É imperioso evitar a tolerância passiva, aquela atitude de quem aceita a existência com o outro não porque o deseje e veja algum valor nisso, mas porque não o consegue evitar. Há que se incentivar a tolerância ativa que consiste na coexistência, na atitude de quem positivamente convive com o outro porque tem respeito por ele e consegue ver os valores da diferença e assim pode se enriquecer”. Se todos nós tivermos essa compreensão, a de que a tolerância é antes de tudo uma exigência ética, com o direito de cada pessoa ser aquilo que ela é, com suas diferenças, não resta a menor dúvida de que o mundo será bem melhor. Ademais, já se disse que a liberdade de expressão é tudo aquilo que está entre o bom senso e o direito à integridade física e moral do outro. Se a sua “liberdade de expressão” oprime ou afeta a vida e a integridade de outro, não é liberdade de expressão, é crime de discriminação. Por tudo isso, é preciso pensar, exercer o senso crítico, antes que seja tarde demais.

Post Scriptum
Coisas que eu gostaria de ver em Aracaju
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Sob o título acima, assinado por Hercílio Arandas, o jornal Correio de Aracaju, de 1° de maio de 1948, página 2, publicava o seguinte artigo, na coluna “Fatos, Alegorias e Ficções”: “1 - Pelo menos uma Faculdade de Filosofia para o preparo dos futuros professores que, segundo as atuais exigências, vão desaparecer ou tornar-se reduzidíssimos. 2 - A barra aberta para o maior desenvolvimento de nosso comércio, da cidade e de todo o Estado. 3 – Uma ponte ligando a Barra dos Coqueiros à cidade, com uma parte giratória, como a do Recife, para a passagem dos barcos. 4 – Uma linha de bondes que vá a Atalaia, além de marinetes. 5 – A remoção desse grotesco calçamento para as ruas afastadas e ainda não calçadas, e a sua substituição por outro mais moderno, rejuntado por cimento. 6 –Uniformidade e ordem nos transportes urbanos, de sorte que o povo soubesse por onde passam e as horas em que passam. 7 – A organização de ‘comandos’ para fiscalização das casas de pasto e de outros centros de serventias públicas. 8 – A retirada dos depósitos de lixo que se encontra em cada terreno desocupado, mesmo junto às casas de morada. Que o governo obrigasse aos proprietários a construir casas neles, ou cercá-los com muro. 9 – Calçada na Avenida Simeão Sobral, para que o visitante que entrasse nela tivesse a impressão da ‘cidade menina’. 10 – A edificação de vilas populares, a fim de atender o angustioso problema da falta de casas”. No mais, o articulista justificava cada um desses desejos para a melhoria da bucólica Aracaju dos anos 1940.


- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de 12.04.2015, Caderno A-7.
- Postada no Blog Primeira Mão em 12 de abril de 2015, às 16h00min, sítio:





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