Aracaju/Se,

domingo, 18 de novembro de 2018

A CABEÇA DE JOÃO BATISTA


Opinião pessoal
A cabeça de João Batista
Clóvis Barbosa
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Muitos sabem que João Batista foi decapitado por ordem de Herodes. Poucos, contudo, conhecem o motivo da execução. Muitos sabem que a morte de João está associada a um juramento que o governante fez para a sua sobrinha. Muitos também sabem que esse juramento decorreu do estertor concupiscente de Herodes em ver a moça bailando para ele. Todos, afinal, sabem que, em troca do espetáculo, a inescrupulosa dançarina pediu a cabeça do profeta numa travessa. Mas o porquê da solicitação é que vem a ser enigmático para um sem número de pessoas. A rigor, João foi morto porque teria cometido um delito de opinião. Na verdade, João acusava Herodes de manter uma relação adulterina com a esposa de seu irmão, Filipe. Por isso, foi detido. Herodes, entretanto, com receio de causar um tumulto entre os seguidores do prisioneiro, manteve-o vivo. Isso até a dança de Salomé. E Herodes, embevecido pelo vinho, sobrepujado pela tacanhice de sua promessa, mandou fazer o que, em princípio, não desejava: extirpar não só a língua, mas a cabeça de João. Muitos também são os que sabem que o pastor Martin Luther King Jr. foi assassinado em 1968 por segregacionistas do sul estadunidense por causa do que pensava. Poucos, porém, sabem que o ativista social foi a pessoa mais jovem a ganhar o Nobel da paz, aos 35 anos. Muitos sabem que Luther King proferiu um dos mais famosos discursos da história, em março de 1963, junto ao memorial Lincoln: I have a dream. Poucos, todavia, sabem que a liberdade de imprensa, conforme formatada hoje no direito norte-americano, com repercussão mundial, deve muito a esse mártir. Por conta dele, veio à tona o caso New York Times Co. versus Sullivan, de 1964, cujo desfecho acha no nome de Luther King especial tonalidade. Com efeito, Luther King era pastor da igreja batista, em Montgomery, Alabama. Lá pelos idos de 1960, quando o clima entre brancos e negros exigia filtro solar em razão de sangrentas disputas raciais (a isso associada uma série de manifestações em defesa dos direitos civis), estudantes do Alabama acabaram por tomar uma sova da polícia local.
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Tudo se deu em torno de uma passeata organizada por discentes negros que defendiam igualdade e respeito pelas liberdades públicas no sul dos EUA, historicamente marcado pela intolerância contra os afrodescendentes. De fato, a polícia repeliu os integrantes da passeata, mas não há registros de que a ação policial tenha sido irascível. Sucede que o New York Times, em 29 de março de 60, publicou uma matéria que expunha o fato de maneira um tanto quanto fora de foco. Segundo o jornal, os policiais lançaram uma onda de terror sobre os estudantes, acrescentando que a universidade do Alabama havia sido cercada por um forte aparato, que desceu o sarrafo. Não satisfeito, o jornal ainda declarou que aqueles mesmos policiais tinham bombardeado a casa do pastor Martin Luther King, prendendo-o e torturando-o. Algo grave. Mas não muito compatível com a realidade, pois Luther King não tinha sido preso e tampouco torturado. Desse modo, o chefe de polícia do Alabama, L. B. Sullivan, ajuizou uma ação contra o New York Times pleiteando uma indenização. No primeiro grau, Sullivan conseguiu que o New York Times fosse condenado em 500 mil dólares, decisão sustentada pelo tribunal de justiça estadual. Todavia, na suprema corte as coisas mudaram. Por quê? Por conta da interpretação que por lá foi atribuída à emenda nº 1 da constituição americana: “O congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra, ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de dirigir ao governo petições para a reparação de seus agravos”. A constituição brasileira, no art. 5º, IV, estabelece ser “livre a manifestação do pensamento”. Todavia, o ordenamento jurídico nacional, ao contrário do americano, editou uma lei de imprensa, ainda na ditadura, que trouxe reflexos criminais para abusos na expressão do pensamento. Diferentemente da ordem pátria, os regramentos jurídicos do sistema norte-americano (Common Law) dependem substancialmente da interpretação que lhes é dada pela suprema corte, em pontos constitucionais.
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Assim, a liberdade de imprensa, nos Estados Unidos, desamarrou-se do Common Law, adentrando exclusivamente nas entranhas do Constitutional Law. Numa palavra, a liberdade de imprensa, nos EUA, foi erigida a dogma essencialmente constitucional. Diversamente, no Brasil, ainda na vigência da antiga Lei de Imprensa (Lei 5.250/67, declarada inconstitucional pelo STF), dependia-se da interpretação que o STJ lhe dava ao caso concreto. De qualquer forma, a decisão Sullivan inaugurou uma concepção da liberdade de imprensa, ali onde eventuais ofensas fossem irrogadas contra homens públicos, a exemplo do chefe de polícia do Alabama. Segundo a suprema corte americana, homens públicos (public officials), quando estivessem exercendo seu múnus público (official conduct), só fariam jus a uma indenização se quem os ofendesse o fizesse com actual malice, ou seja, com certeza absoluta de que a acusação era falsa. Na dúvida acerca da veracidade da acusação, a imprensa teria o direito de acusar, ainda que pudesse incorrer em erro. Seria o preço a pagar pelo exercício de uma atividade pública. Portanto, se o servidor não demonstrasse com total clareza (convincing clarity) que a imprensa sabia da falsidade da acusação, paciência. In dubio, acuse-se o agente público. Por conseguinte, seria necessário provar, no judiciário, que a imprensa atuou com inequívoco conhecimento da falsidade da acusação (knowledge of falsity). Em 1996, por exemplo, a cinematografia hollywoodiana, através da lente de Milos Forman, abraçou a teoria da actual malice no filme People versus Larry Flynt. No Brasil, se o judiciário não abraça a teoria, o que dizer do cinema. Malgrado tudo isso, decisões jurisprudenciais brasileiras têm dado cobro à tese que a espanhola Matilde Zavala de Gonzalez esboçou: doutrina da proteção débil dos agentes públicos (menos corajosa do que a actual malice). Para a catedrática ibérica, homens públicos merecem uma tutela mais flébil, pois se colocaram em situação de plena fiscalização, mexendo com interesses gerais, a exemplo do erário. Matilde trabalha inclusive com a possibilidade de aceitar críticas que pareçam injustas.
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Muito pouco para um sistema que quer, efetivamente, erradicar a censura da imprensa. Nisso, a actual malice se sobressai: os homens públicos devem aceitar críticas injustas e até mentirosas, desde que, obviamente, a imprensa não esteja na seara do desprezo pela verdade (reckless disregard). Karl Marx, no texto “o papel da imprensa como crítica de funcionários governamentais” pretexta que “a função da imprensa é ser o cão de guarda público, o denunciador incansável dos dirigentes, a boca onipresente do espírito do povo que guarda com ciúme sua liberdade”. Marx insiste que “não basta combater as condições gerais e as altas autoridades. A imprensa precisa decidir entrar na liça contra este policial em particular, este procurador, este administrador municipal”. Isso refletiu no pensamento de Guilherme Döring: “O homem público deve ser forte o suficiente para arrostar críticas.” Se o homem público não aguenta pauladas da imprensa, saia da vida pública. Esse, o espírito da primeira emenda. Esse, o espírito que o art. 5º, IV, da CF deveria aspergir. O problema é que certos agentes enxergam tão alto como animais rastejantes. Para eles, não interessa uma imprensa livre. Para eles não interessa uma imprensa forte. Para eles, interessa arrancar a cabeça de quem dá corpo a uma ideia. Para essa corja, que perde a tranquilidade quando a imprensa ascende, ficam os ensinamentos da filosofia nietzschiana: “quanto mais nos elevamos, menores parecemos aos olhos daqueles que não sabem voar”.


Post Scriptum
O catecismo
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Eu sempre digo que minha mãe foi uma heroína. Durante vinte e dois anos ininterruptos viveu para parir. Foram vinte e dois filhos, mas apenas doze sobreviveram, sete mulheres e cinco homens. Era de uma determinação extraordinária e fez da dedicação ao marido e à sua prole a razão do seu viver. Os filhos homens tinham que trabalhar logo cedo e as mulheres aprendiam a ser donas de casa ou costureiras, como ela. Foi assim no fim da década de 1950 e começo da de 1960, em Salvador-BA. Tinha lá os meus onze ou doze anos quando minha mãe impôs ao meu irmão Cristóvão que me iniciasse no comércio de gibis. Na época, o cinema Santo Antônio, no centro histórico de Salvador, era o point, aos sábados, do negócio de venda e troca de revistas. Tarzan, Flash Gordon, Durango Kid, Cisco Kid, Castorzinho e Nevada, Capitão Marvel, Batman e Robin, Super Homem, Fantasma, Rei da Polícia Montada, Mindinho, Flecha Veloz, Cavaleiro Negro, Kid Montana, Jerônimo - o Herói do Sertão, Capitain América, Homem Aranha, Sherlock Holmes, Rocky Lane, O vigilante Rodoviário, além das revistas da Disney. Todas bombavam no comércio entre os jovens e aficionados pela sétima arte. O Santo Antônio era o único cinema do centro que exibia aos sábados os famosos seriados, sempre terminando com uma situação de perigo vivida pelo herói. Ao final da película, vinha sempre a pergunta e a afirmação resoluta: Será que Capitão Marvel se salvará? Volte na próxima semana! O mundo cultural baiano, à época, fervia com o cinema, o teatro (após a abertura do Vila Velha) e a música. Era uma época revolucionária onde nomes como Roberto Pires, Caetano Veloso, Pepeu Gomes, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia, Galvão, Paulinho Boca de Cantor, Raul Seixas, Trigueirinho Neto, Guido Araújo, Geraldo D’El Rey, Helena Ignez, Glauber Rocha e tantos outros começavam a pontificar e, muitos deles, frequentadores do cinema Santo Antônio e meus clientes. Meu irmão, mão de figa, deu-me apenas dez revistas e mandou que eu me virasse. Dessas dez, cheguei a ter mais de seiscentas. Mas, o negócio melhorou depois que passei a vender os famosos “catecismos”, que eram pequenas revistas eróticas, desenhadas sobre papel vegetal, o que eliminava a necessidade do fotolito. Eram, por assim dizer, fotonovelas pornográficas e tinham um grande público. Todas as semanas novos títulos eram lançados. Lembro-me de vários que exploravam um personagem chamado João Cavalo. O inventor dessas revistinhas foi o grande Carlos Zéfiro, tanto que a publicação era chamada de “O catecismo de Zéfiro”. As vendidas em Salvador eram compradas numa gráfica situada no Pelourinho. O meu fornecedor, Seu Carlito Pescoção, era empregado da gráfica e pertencente à irmandade da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, localizada defronte do seu trabalho. Sempre comprava, por semana, cinquenta catecismos. Já levava o dinheiro certo. Eu chegava na janela da gráfica e dizia: - Seu Pescoção, vim rezar 50 pai nosso. Ele metia a cabeça pela janela e dava um zoom no local, com uma precisão que enxergava toda a área do Pelourinho. Na certeza da limpeza, me dizia: Cadê a bênção do padre para a reza? De imediato, eu lhe entregava o dinheiro e, conferido, recebia os “catecismos”.
  
- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de 16 e 17 de agosto de 2015, Caderno A-7.
- Postado no Blog Primeira Mão em 16 de agosto de 2015 às 13h32min, conforme site:

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