- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de 29/10/2016, Caderno A-7.
sexta-feira, 3 de abril de 2020
O Salão dos Passos Perdidos
Opinião
O Salão dos Passos
Perdidos
Clóvis
Barbosa
O que vem à sua mente ao ouvir a
expressão “salão dos passos perdidos”? Seria uma expressão sem significado? Um
lugar onde se caminha de um lado para outro sem ir a lugar algum? Uma sala de espera
onde se aguarda o momento de ser recebido por alguém? Um espaço para reflexão? Pois
é... Todos esses conceitos podem ser aplicados. E toda instituição que se preze
tem a sua sala ou salão dos passos perdidos. Os Tribunais de Justiça,
Ministério Público, Maçonaria e até instituições financeiras criaram espaços
congêneres utilizando-se da mesma sinonímia. A sua origem vem do Parlamento Inglês,
que possuía uma sala de espera com esse nome, onde as pessoas aguardavam o
momento de ter uma audiência com os legisladores. A Maçonaria considera o seu
espaço como um dos mais importantes do ritual de iniciação do novel maçom. Para
a Enciclopédia MACKEY, o sentido maçônico desta denominação se origina no fato
de que todo passo realizado antes do ingresso na maçonaria, ou que não se
coaduna com suas Leis, deve ser considerado como perdido. O famoso criminalista
Evandro Lins e Silva, em depoimento ao Centro de Pesquisa e Documentação de
História Contemporânea da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC) - entrevista prestada
a Marly Silva da Motta e Verena Alberti, edição de texto de Dora Rocha, Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997, que culminou em
livro do mesmo título - conta que na sua juventude, como repórter do jornal Diário de Notícias, foi designado para
cobrir os julgamentos do Tribunal do Júri no Rio de Janeiro, tendo, então, se
fascinado com os debates entre os advogados e promotores e, principalmente, com
um corredor existente no Fórum, chamado de salão dos passos perdidos, ambiente
inteiramente vazio, sem bancos e cadeiras, onde
as pessoas ficavam vagando e se encontrando por ali. Essa experiência
jornalística no Tribunal de Júri veio influenciar de forma decisiva na sua
escolha pela profissão advocatícia. Evandro, ao lado de Evaristo de Moraes, pai
e filho, Roberto Lira e Sobral Pinto, tornou-se um dos mais célebres advogados
de defesa do século passado.
Todos acompanharam o escândalo ocorrido
no país envolvendo o cidadão conhecido por Carlinhos Cachoeira. Digo cidadão
porque o nosso sistema constitucional inadmite a culpa sem o trânsito em
julgado de uma sentença penal condenatória, ainda que em fevereiro deste ano de
2016 o Supremo Tribunal Federal, no Habeas Corpus 126292, tenha entendido que a
execução da pena condenatória possa se dar após a confirmação da sentença em
segundo grau. Ao lado dos supostos ilícitos e da teia de políticos formada em
torno do tido contraventor, o seu advogado, Márcio Thomaz Bastos, ex-ministro
da justiça do governo Lula, de 2003
a 2007, foi bastante censurado, seja por conhecidos
vampiros de almas, que vivem de denegrir a honra dos outros, seja por conhecidos
inimigos declarados da advocacia e das liberdades dos cidadãos, ou, ainda, por
pessoas bem-intencionadas que, por falta de conhecimento, não entendem o porquê
da sua participação em um processo que tinha como réu uma pessoa controvertida
e acusada da prática de diversos crimes. As agressões e o achincalhe desferidos
contra Thomaz Bastos naqueles tempos não deixaram de ser uma tentativa de
setores rancorosos, ressentidos e atrasados da sociedade de acovardar a
profissão. Para consagrar o festival de insensatez que tomou conta do
“besteirol” nacional, um procurador da República em Porto Alegre ,
resolveu entrar com um processo criminal contra o advogado, sob a alegação de
que ao receber honorários de alguém acusado de enriquecimento ilícito está
praticando o crime do art. 180 do Código Penal, ou seja, a receptação culposa.
Há de se perguntar, perquirindo ao “nobre” procurador: e a imensidão de
dinheiro de impostos pagos pelo Sr. Carlinhos Cachoeira aos cofres públicos,
que serviram inclusive para pagamento dos seus subsídios, o tornaria agente
ativo da prática do crime de receptação culposa? O que há, na verdade, é uma ojeriza ao princípio da ampla defesa previsto
na Constituição da República. Essa garantia constitucional pressupõe, além da
defesa ampla e do respeito ao contraditório, o pleno conhecimento pelo réu das
informações e documentos constantes do processo, sendo-lhe viabilizados sempre
com antecedência e tempo razoáveis.
Márcio Thomaz Bastos
Mas essa prática de questionar a ética
dos que defendem acusados polêmicos e de confundi-los com os seus clientes não
é novidade. Lembremo-nos dos advogados dos contrarrevolucionários da Revolução
Francesa; do caso do cidadão francês, oficial da artilharia e judeu, Alfred
Dreyfus, vítima de uma armação política; de John Demjuk, em Israel, acusado da
prática de crimes gravíssimos; dos defensores de Sacco e Vanzetti, que desde o
início defendiam a tese da negativa de autoria; dos advogados dos presos políticos
nas ditaduras de Vargas e militar; e, alguns anos atrás, do caso de um dos mais
extraordinários advogados do País, Evaristo de Moraes, que foi tripudiado pela
mídia pelo fato de defender o ex-presidente Fernando Collor durante o processo
de impeachment. No Tribunal
Revolucionário instaurado logo após a Revolução Francesa, é célebre a frase com
que o advogado Nicolas Berryer iniciava as suas defesas: “Trago à convenção a
verdade e minha cabeça; poderão dispor da segunda; mas só depois de ouvir a primeira”.
Aliás, Rui Barbosa já dizia que não há causa indigna de defesa. Aos inimigos da
advocacia criminal, uma pequena história: o advogado Sobral Pinto, um dos
ícones da advocacia brasileira, era conhecido pelas suas convicções religiosas,
ligado ao catolicismo, e anticomunista ferrenho. Em 1935, na ditadura de
Getúlio Vargas, aceitou defender o líder comunista Luiz Carlos Prestes,
colocando os seus conhecimentos técnicos à disposição do “Cavaleiro da
esperança”. Na Folha de São Paulo, Márcio Thomaz Bastos nos relembrou em seu
artigo “Em defesa do direito de defesa”, a máxima de Rui sobre a matéria:
“Quando quer e como quer que se cometa um atentado, a ordem legal se manifesta
necessariamente por duas exigências, a acusação e a defesa, das quais a
segunda, por mais execrando que seja o delito, não é menos especial à
satisfação da moralidade pública do que a primeira. A defesa não quer o panegírico
da culpa ou do culpado. Sua função consiste em ser, ao lado do acusado,
inocente ou criminoso, a voz dos seus direitos legais”.
Evaristo de Moraes
Recentemente, uma onda de acusações tem sido
endereçada ao Juiz Sérgio Moro, que vem prestando um relevante serviço no
combate à corrupção através da Operação
Lava Jato. A maior delas é de ele ser seletivo na condução dos processos. O
pior é quando esse tipo de acusação parte de setores ligados ao direito que,
por ignorância ou má fé, esquecem que o que rege a atuação do magistrado é o
princípio constitucional da inércia processual ou de jurisdição. Em outras
palavras, nenhum juiz pode prestar a tutela jurisdicional senão quando a parte
ou o interessado a requerer. Esse princípio não permite que o processo seja
instaurado ex officio pelo
magistrado. No caso criminal, o processo é impulsionado pelo Ministério
Público. Mas é aquela história... Todo acusador que se preze sempre apela para
uma moral tão vagabunda quanto ele, a fim de que seus pontos de vista, quase
sempre tacanhos, prosperem. É por Isso que seus passos são perdidos.
POST SCRIPTUM
PULGA PRENHA
Pulga Prenha era o
apelido do professor e promotor público João Marques Guimarães, que teve uma
participação ativa na vida de Sergipe durante os anos 30 a 60 do século
passado. Gordo e glutão inveterado, tinha uma personalidade cativante que
apaixonava a todos que conviviam com ele. Ademais, era um brilhante orador.
Conta Murillo Melins, no livro “Aracaju Romântico que vi e vivi”, que quando Marques
Guimarães era estudante na Faculdade de Direito da Bahia, fez um discurso
inflamado em defesa dos pleitos dos estudantes numa greve articulada contra o
governo da Bahia, sendo, por isso, preso pela polícia. Na prisão, Guimarães
lembrou-se que, certa vez, tinha sido elogiado pelo interventor da Bahia, o
Cel. Juracy Magalhães, ao presenciar um de seus discursos na Faculdade.
Imediatamente pediu ao carcereiro que fizesse uma ligação para o interventor,
que dizia ser seu amigo. Ao atender ao telefone, Juracy perguntou quem estava
do outro lado do aparelho, ao que ele respondeu: - É Marques Guimarães. – Não conheço ninguém com este nome, disse-lhe
Juracy. Não tendo outro jeito, Marques Guimarães, acentuou: - É o Pulga Prenha, excelência, sou o estudante
que discursou na Faculdade de Direito na posse do Diretor! – Aaaahh... Agora
eu sei! Por que não falou antes?, e mandou soltá-lo. Outra característica
de Marques Guimarães era o de ser rato palaciano. Entrava e saía governador,
ele sempre arranjava um jeito de continuar como assessor. E sempre como
assessor de imprensa e chefe do cerimonial. Antes da Rádio Difusora, houve uma
rádio experimental, que funcionou nos fundos do Palácio Olímpio Campos. Nesse
período, ele comandou essa emissora que funcionou sob o nome de Aperipê, mais
tarde Rádio Difusora e depois voltou a ser Aperipê. Como bom comilão,
adorava as viagens para o interior acompanhando a comitiva governamental, onde
comia e bebia à vontade. Certa vez, um grupo de pessoas estava no Iate Clube quando
adentrou ao local um homem de cueca aos gritos lancinantes pedindo socorro. Ele
informava que um louco invadiu a casa onde estava hospedado atirando a esmo. A
casa ficava situada na mesma avenida Beira Mar, imediações da hoje ponte do
Riomar. Imediatamente todos correram para o local. Logo reconheceram o
atirador. Era Osvaldo Marinho, o proprietário do imóvel. É que ele tinha cedido
o imóvel para um grupo de políticos que estava em Aracaju para uma reunião. Só
que no momento da cessão ele estava totalmente embriagado. No dia seguinte, ao
passar pelo imóvel, viu que um grupo de pessoas estava na sua residência. Tinha
esquecido da cessão e passou a atirar em direção à residência, pensando que
eram ladrões. O homem de cueca que adentrou ao Iate era o futuro deputado
Ulisses Guimarães, que marcou época durante a Constituição de 1988. Ao chegarem
à casa, ouvia-se uma voz pedindo socorro, mas todos os cômodos estavam vazios
após a confusão. Até que ao aproximar-se de um Aero Willys estacionado na porta,
o grupo percebeu as súplicas mais intensas. Era Marques Guimarães que, na hora
do tiroteio, escondeu-se por baixo do automóvel e, dado o seu corpanzil, ficou
entalado. Foram precisos mais de 20 homens para suspender o carro, mas, para
surpresa de todos, lá estava Pulga Prenha,
agarrado a uma generosa sobrecoxa de frango.
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