quinta-feira, 9 de julho de 2020
Carta aos Iluminados
Opinião
CARTA AOS ILUMINADOS
Clóvis Barbosa
A luz subverte os olhos. Daí, muitos optarem pela
noite. É que o ato de enxergar envolve interpretação. Disso, decorre a
necessidade de saber ver, conseguir entender e ser capaz de traduzir. A
primeira etapa (essencialmente sensorial) contempla a acomodação do objeto na
retina. Só isso, porém, não significa nada. Intrincados itinerários até a
mente, que o decifrará, precisarão ser percorridos, pois, nela, se aperfeiçoará
a compreensão. Com efeito, é o cérebro, pulsando engrenagens lubrificadas à
base de serotonina, que nos permitirá distinguir, por exemplo, uma cadeira de
um livro. Vencido esse momento intermediário, advém o epílogo: verbalizar a
percepção. Aqui reside o instante de maior angústia para idiotas (os mais
primitivos e selvagens, dentre os oligofrênicos). O requinte na arte de ofender
não consiste em designar o desafeto como demente ou imbecil. O ápice do ultraje
está no termo “idiota”.
Há duas espécies de idiota, infiltradas nos mais
diversificados nichos sociais, a causar danos às vezes irreparáveis. A primeira
é aquela composta pelos idiotas que enxergam menos do que se lhes mostra (os
míopes). Já na segunda se encontram arregimentados aqueles que enxergam mais do
que se põe à sua frente (os hipermétropes). A cinematografia hollywoodiana, em
1991 (numa das mais refinadas películas sobre a genialidade), estampou, com
singular êxito, o protótipo do idiota míope. Trata-se do filme “Mentes que Brilham”,
dirigido e estrelado por Jodie Foster. No original, o título da obra é “Little
man Tate”, clara alusão ao nome da personagem protagonista, Fred Tate, um
garotinho superdotado de sete anos. A cena que consagra a idiotia (que fica
entre as mais burlescas do longa-metragem) se dá quando a professora de Fred
rabisca uma série de números no quadro-negro. Uns são pares, outros ímpares.
O pequeno Fred nem bulhufas dava à sua pífia aula.
Assim, a inconsequente “tia” do maternal acha por bem desafiar o guri: “Quais
desses números podem ser divididos por dois?” O moleque, com indiferença, nem
se dá ao trabalho de levantar a cabeça. Mas, a contragosto, entre um quê de
obrigatória submissão e ironia, com voz modorrenta e arrastada por quilos de
desprezo, responde: “Todos”. A toupeira da professora, achincalhada pelo
episódio, volta-se para a lousa, esbugalha os globos oculares e,
silenciosamente, grita para dentro de si: realmente, qualquer número (e não só
os pares, como supôs) pode ser dividido por dois. A questão é se o quociente
será número inteiro ou decimal. Não fosse a iluminação do pimpolho, a idiota da
professora morreria intelectualmente cega. Os números até que eram cravados na
retina e sua massa encefálica os hospedava como tais. Onde, então, morava o
problema?
Estava ali, onde a
docente teve que compor ideias com eles [os números]. Seu cérebro entrou em
curto-circuito. Excesso de luz para uma idiota míope. Como, todavia, conceber o
mecanismo “irracional” de um idiota hipermétrope? Saiamos do terreno da
cinematografia e encaminhemo-nos ao campo da literatura. Malba Tahan. No fim da
década de 1930, Tahan publicou seu festejado livro “O homem que calculava”, no
qual narra as façanhas matemáticas de Beremiz Samir. Numa das histórias
vivenciadas por Samir, Tahan conta que ele, acompanhado do amigo, ia pelo
deserto, montado num camelo. De súbito, depararam-se com o que parecia ser uma
caravana recém-saqueada. Entre homens e animais mortos, contudo, emerge uma
voz. Era um príncipe, o chefe da caravana, que, ao perceber que os meliantes
que se lançavam sobre ela matariam a todos, jogou-se entre os que tinham sido
abatidos, passando-se por morto.
Vendo que, nos forasteiros, estava a tábua de
salvação, implorou que eles o levassem até seu principado e, rogou água e pão.
Samir trazia consigo cinco pães; seu amigo, três. O príncipe pediu que os
dividissem com ele, prometendo que, assim que alcançassem seu palácio, daria
uma moeda de ouro por cada um dos pães, o que totalizaria oito moedas de ouro.
Chegando à casa do nobre, em Bagdá, este cumpriu imediatamente o pactuado. Deu
cinco moedas de ouro a Samir e três ao amigo deste. No entanto, Samir redarguiu
a divisão, afirmando que o correto seria ele receber sete moedas de ouro,
enquanto o amigo receberia tão-somente uma. Espantado com a declaração, o
príncipe exigiu uma justificativa do matemático. Samir, desse modo, explicou
que toda vez que iam comer, pegavam um dos pães e o partiam em três pedaços: um
para o príncipe, um para ele [Samir] e outro para o seu amigo.
Como Samir possuía cinco, seus pães foram partidos
em quinze pedaços. Como seu amigo tinha três pães, os seus foram partidos em
nove pedaços. Totalizavam-se, por conseguinte, vinte e quatro pedaços
(15+9=24). Como eram três a comer dos pães, a cada um foram destinados oito
pedaços (24÷3=8). Sendo assim, como o amigo de Samir comeu oito pedaços, dos
nove resultantes da divisão de seus três pães, ele acabou por contribuir com
apenas um pedaço para o príncipe. Como Samir também comeu oito pedaços, mas dos
quinze resultantes da divisão de seus cinco pães, ele acabou por contribuir com
sete pedaços para o príncipe. Somando os sete pedaços de Samir com o único
pedaço de seu amigo, atingimos os oito pedaços de pão, degustados pelo
príncipe. Portanto, Samir, de fato, tinha de receber sete moedas (referentes
aos sete pedaços); já seu amigo, uma moeda (referente a um pedaço de pão).
A visão iluminada de Beremiz Samir lhe rendeu
honrarias e um alto cargo naquele principado, exatamente porque não foi um
idiota hipermétrope, que atropela a sofisticação do raciocínio e esburaca a
manta asfáltica por onde trafega a lucidez do pensamento. Idiotas, a rigor, não
esgrimam com números. Ora não veem números onde eles existem, ora veem números
onde eles não existem. O Brasil, por exemplo, está padecendo de esclerose
matemática, em ambas as modalidades (míope e hipermétrope). Basta interpretar a
crise criada por segmentos políticos que não se conformaram com a derrota nas
urnas. Instituíram uma crise política que destruiu a economia. Agora, depois de
afastar uma presidente eleita pela escolha popular, estão com dificuldades de
reconstruir o país destruído por eles mesmos. Mas, como dizia o cronista Nelson
Rodrigues, “Os idiotas vão tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela
quantidade. Eles são muitos”.
Post Scriptum
O Azar
Alfredo era advogado em
um grande banco de Salvador, onde chefiava um grupo de oito colegas. Bom
sujeito, senso de humor extraordinário, sempre estava alegre e disposto. Aliás,
a sua vida se resumia ao trabalho e aos encontros de fim de semana com as
famílias de seus colegas de banco. Tinha por eles uma grande afeição e a
recíproca era verdadeira. Casado, vivia bem com Emília, uma perfeita dona de
casa. Mas ele tinha uma predileção maior pela Dra. Irene, responsável pela área
trabalhista. Era um pedaço de mulher! Os homens viviam embevecidos por ela, mas
a amizade que os unia fazia com que ninguém avançasse qualquer sinal, em termos
de assédio, na sua direção. Qualquer um não! Alfredo avançava o sinal, às vezes
discretamente, outras abertamente para dar a impressão que era somente
brincadeirinha perante todos. Irene era casada com Fernandez, corretor de imóveis,
filho de espanhóis, muito simpático e que fazia parte do grupo. As
“brincadeirinhas” de Alfredo eram sempre de elogios - ora ao corpo
de Irene, ora às pernas, ora aos olhos verdejantes, ora à boca gulosa – e sucessivamente
terminavam com a frase “Ai se você fosse minha só uma vez...” Irene, apenas ria
e dizia “Alfredo, Alfredo, deixe Emília saber...” A verdade é que ela também
levava na brincadeira. O tempo foi passando e, certo dia, Lourdinha, mulher de
outro causídico do banco, resolveu olhar um terreno acima de Lauro de Freitas,
cidade vizinha de Salvador, num condomínio hoje chamado de “Busca Vida”, um
lugar que na época só ia quem tinha negócio. A chegada ao local era uma viagem,
pois ainda não tinha sido inaugurada a “Estrada
do Côco”. Para tanto, Lourdinha chamou para a viagem a mulher de Alfredo,
Emília, e foram ver o terreno na companhia de Fernandez.
Neste mesmo dia, ao chegar ao trabalho, Alfredo foi logo elogiando a beleza de
Irene e, antes que ele dissesse “ai se você fosse minha...”, ela respondeu:
“Vai ser hoje, quero ser sua...” Alfredo empalideceu! – Meu Deus, será verdade
o que estou ouvindo? Logo marcaram para sair à tarde. Após o almoço, o casal saiu
no carro de Alfredo. Ele já tinha pensado onde levá-la, um lugar bem longe, mas
discreto e perto do mar. E qual o lugar escolhido? Exatamente... o hoje
condomínio “Busca Vida”. De repente, a mulher de Alfredo, que estava com Lourdinha
e Fernandez, balbucia: - Oxente, vejam ali. Aquele é o carro de Alfredo? O que
ele está fazendo aqui? Os dois olharam e ratificaram o balbucio de Emília.
Aproximaram-se do carro e o que viram?! Os dois nus, atracados sexualmente. –
Alfreeedo???!!! – Ireeeeene???!!! O que é isto???!!! Gritaram ao mesmo tempo,
Fernandez e Emília. Espavorido, Alfredo respondeu na hora: - Azar, simplesmente
azar!
- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE., edição de 10 de
dezembro de 2016, Caderno A7.
- As fotos aqui postadas são do Google.
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