Isto é História
Aracaju Romântica que Vi e Vivi - Tipos Populares
O “PRIMO”
CARNERA
Murillo Melins
Aracaju perdeu recentemente o seu maior seresteiro, o violonista Urcino Fontes de Araújo Góes. Citado assim com esse nome pomposo, somente os mais íntimos e pessoas que lidavam com ele em suas atividades profissionais (funcionário público e comerciante) e familiares, conseguem identificar o cidadão conhecido nos meios boêmios e artísticos, não só da capital como de todo o Estado e além-fronteiras, com o nome de “Carnera”. Na verdade, não queremos registrar neste livro a figura do funcionário dos Correios (meu ex-colega) ou do comerciante distribuidor de produtos farmacêuticos. A menção aqui é ao artista Carnera, violonista, compositor e boêmio por vocação.
Carnera e João Mello
Natural de Boquim-SE (26/06/1920), por diversas
circunstâncias, com seis anos de idade veio residir em Aracaju. A não ser por
um pequeno período (cerca de cinco anos) em que profissionalmente residiu em
São Paulo, fez de nossa cidade a sua Terra, não que Aracaju o tenha adotado, ao
contrário, ele quem adotou esta cidade e aqui viveu intensamente a sua vida
artística, dedilhando maravilhosamente o seu violão. Senhor de todos os ritmos
em noites de serenata, saraus da sociedade, nos “assustados”, nos palcos dos
teatros e programas da Rádio Aperipê (Difusora), que ele praticamente fundou em
1939, com sua alma gêmea musical, João Mello, e o maior seresteiro do Brasil de
todos os tempos Sílvio Caldas, o “Caboclinho Querido”.
Francisco Alves, o Rei da Voz
Foi professor de violão de João Mello, do internacionalmente festejado artista João Gilberto, e por sua orientação passaram violonistas como Macêpa, Paranhos, Carvalhal e tantos outros. O conjunto regional de Carnera acompanhou todos os grandes artistas, desde os maiores cartazes da radiofonia e do disco nacional que se apresentaram em Sergipe, desde 1938 – quando pela primeira vez esteve em Aracaju, Francisco Alves, o Rei da Voz – até mais ou menos o final da década de 80, quando com Santos Mendonça, João Mello, Miguel Alves e outros juntamente, participou do espetáculo “Pano de Boca”, onde foram feitas retrospectivas dos anos dourados da radiofonia sergipana.
Primo Carnera boxeador italiano
Artista, na verdadeira expressão da palavra, com sua
alma sensível, deixou para a posteridade composições de alto nível, dignas de
serem incluídas no cancioneiro nacional. Infelizmente, Carnera não gravou
discos. A época em que brilhou no nosso meio artístico, não oferecia
oportunidade para isso, o que é lamentável. Esse apelido de Carnera que Ursino
incorporou à sua personalidade. A ele foi outorgado pelo seu companheiro de
juventude, Heráclito Diniz, que quis homenageá-lo com o nome do homem mais
forte do mundo àquela época, o boxeador campeão mundial dos pesos pesados,
Primo Carnera. O gozado é que o Ursino, em toda a sua vida, com mais de 1,75m
de altura, jamais pesou acima de 40 quilos.
Rita Hayworth
E assim ele permaneceu para sua família, seus
amigos, artistas e o povo em geral, o popularíssimo, engraçado e famoso
violonista Carnera. Lembro-me de um Carnaval do fim dos anos 40, tempo em que o
filme norte-americano “Gilda”, representada pela exuberante estrela do cinema
Rita Hayworth era o maior sucesso. Paralelamente, naquele Carnaval, cantava-se
a marchinha da “Mula Manca”. Pois é! O nosso Carnera, no primeiro dia da folia,
apareceu na Praça Fausto Cardoso trajando um luxuoso vestido de lamê, com
abertura nos lados mostrando aquelas “belas pernas”, e exibindo um cartaz com
os dizeres: GILDA, A MULHER AMENDOIM”. Desfilando atrás dele, o popular
“Movimento”, caracterizando um trôpego velhinho, de fraque, cartola e bengala,
portando um cartaz onde se lia: TENHO 70 ANOS, NÃO POSSO MAIS ROSETAR”.
Tentando formalizar um pouco os meus constantes
contatos com ele, tratava-o por Primo – Primo Carnera – e de tanto chama-lo
assim, ele passou também a me tratar por Primo. Era Primo pra lá e Primo pra
cá. Apesar de todo esse gênio alegre e boêmio, Carnera tornou-se hipocondríaco.
Adorava ir a médico e tomar remédios. Nos últimos anos de sua vida deu para
inventar umas doenças para justificar a sua anorexia e dizia que estava comendo
pouco porque o alimento desviava em sua garganta e, parte dele, aos invés de ir
para o estômago pelas vias normais, ia para os pulmões, o que lhe causava um
certo desconforto e, assim, ele seguia comendo como um passarinho.
Comentava também que estava ouvindo pouco, que
falavam de um lado, e o som só lhe chegava ao ouvido do outro lado, abafado e
sem volume, o que lhe valeu a seguinte observação feita por seu bom amigo e
parceiro João Mello: “é que, meu caro Carnera, nós já estamos na era do som
estereofônico e em alta fidelidade, e você ainda está operando em mono”.
Ultimamente ele não vinha tocando o seu violão em sinal de protesto aos
pseudoviolonistas que, ao invés de tirarem melodias e acordes sonoros capazes
de enlevar a quem escuta, limitavam-se a “bater nas cordas” castigando-as com
mau gosto musical.
Carnera viveu intensamente a boemia e a sua ausência
será sentida por todos os sergipanos. Grande Carnera. Grande Primo! Como cantou
Augusto Calheiros, a “Patativa do Nordeste”: - As estrelas lá no céu são
notas musicais com harmonizações originais. Com certeza, em uma delas
estará o nosso CARNERA.
O autor
Murillo Melins
NOTA DO BLOG:
O grande João Gilberto, que se imortalizou com o
criador da Bossa Nova, ao lado de Tom Jobim, Vinícius de Moraes e jovens
cantores e compositores da classe média da zona sul do Rio de Janeiro, morou
por algum tempo em Aracaju estudando o curso ginasial no Colégio Jackson de
Figueiredo, ali na Praça Olímpio Campos, ao lado da Catedral Metropolitana. Um
texto atribuído ao Prof. da UFS, Dilton C. S. Maynard circulou nas redes
sociais logo após a morte de João Gilberto. O título era “Joãozinho de Patu”:
“Os anos 1940 foram férteis para a música
sergipana. A Rádio Difusora Aperipê de Sergipe (prefixo PRJ-6), até então a
única emissora local, recebia cartas escritas por admiradores de várias partes
do Brasil com manifestações que empolgavam os seus cantores e músicos. Dirigindo
o Conjunto Regional da PRJ-6, o violonista Ursino Gois, o “Carnera”, era
convidado a realizar espetáculos nos grandes clubes da cidade – Sergipe,
Cotinguiba. Não faltavam apresentações também no Recreio Club e no Cine Teatro
Rio Branco, nem garotos interessados em aprender a tocar violão, mesmo
“fugindo” das famílias que não queriam ver os seus filhos metidos com “coisa de
malandro”. Um destes moços era Joãozinho da Patu. Joãozinho estudava em
Aracaju. Longe da terra natal, Juazeiro, na Bahia, e da família,
"Joãozinho da Patu" (uma referência à sua mãe, D. Patu) divertia-se
formando conjuntos vocais com os amigos. O futebol também ajudava a afastar a
saudade. O pai de Joãozinho, Juveniano de Oliveira, próspero comerciante,
enviou o filho para a capital sergipana a fim de cursar o ginasial no Colégio
Jackson de Figueiredo (na época, Juazeiro só possuía o curso primário). Era
1944 quando Joãozinho chegou a Sergipe. Tinha 13 anos de idade. A Guerra fervia
na Europa. Durante o tempo em que esteve na cidade, o garoto teve os primeiros
contatos com o violão. Naquela época, tocar este instrumento era algo ainda
muito rotulado como "coisa de boêmio". Mas em segredo, o menino
teimava em praticar e recebia preciosa ajuda externa. O primeiro professor de
Joãozinho foi Carnera. À noite, quando saía para fazer seus programas, não era
difícil que o músico levasse Joãozinho a tiracolo. É que, na época, o moço, que
morava na casa dos tios, era vizinho do violonista. E no estúdio da PRJ-6 o
menino nem lembrava da Guerra ou dos avisos da família. Atento, Joãozinho da
Patu observava os artistas locais: Dão, João Melo, Guaracy Leite França,
Bissextino (baterista que muito o impressionava) João Lopes. Dali, de um
estúdio diminuto, aquela turma realizava esforçadas interpretações das canções
de Sílvio Caldas, Francisco Alves, Carmem Miranda, Orlando Silva e tantos
outros. Vez ou outra alguém mandava ao ar alguma composição própria. Por estas
e outras se dizia que o rádio em Sergipe vivia um grande momento. O menino
olhava a tudo e aprendia. Depois, voltava contente para casa sob a guarda
cuidadosa de Carnera. Mas os tempos mudaram. Joãozinho da Patu cresceu. E, de
violão debaixo do braço, virou João, João Gilberto, cantor da bossa nova,
tornou-se conhecido no mundo inteiro”.
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Na próxima postagem você vai conhecer PEDRO
TELES, o ZÉ DENDÊ, o cômico dos monólogos, dos esquetes, das piadas
inocentes ou picantes e das inteligentes paródias.
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Do livro “Aracaju Romântica que vi e vivi”, de Murillo Melins, 4ª. Edição,
2011, Gráfica J. Andrade.
- As imagens aqui reproduzidas foram retiradas do Google.
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