Aracaju/Se,

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Foro versus Floro-O crime precipitado pela vítima

Artigo pessoal

Floro versus Floro
O Crime Precipitado pela Vítima
Clóvis Barbosa 
Floro Calheiros
A bíblia ensina que “assim como algumas moscas mortas podem estragar um frasco inteiro de perfume, assim também uma pequena tolice pode fazer a sabedoria perder todo o valor” (Ec 10,1). É o caso ocorrido recentemente com a morte do polêmico Floro Calheiros, que viveu em Sergipe e é acusado de se envolver com vários crimes ocorridos no Estado, como os assassinatos do ex-deputado estadual Joaldo Barbosa e do agiota João Vieira da Mota, o Motinha, do atentado perpetrado contra o desembargador Luiz Mendonça, então Presidente do Tribunal Regional Eleitoral e do roubo de urnas no município de Canindé. Também é acusado da prática, como mandante, de vários crimes ocorridos no Estado da Bahia. Com várias prisões preventivas decretadas, foi por duas vezes preso e por duas vezes fugiu cinematograficamente de Sergipe. Era um homem caçado pelas polícias militares e civis da Bahia e Sergipe e pela Polícia Federal. Repentinamente, com a proximidade do júri do crime de Motinha, do qual ele era um dos réus, tido como mandante, era preciso armar uma estratégia que o privilegiasse e desmistificasse todo o arsenal de acusações que existia contra ele, divulgando que tudo seria uma armação de autoridades sergipanas ligadas ao judiciário, ao Ministério Público e ao aparelho policial do Estado. Era preciso passar a imagem de um homem que era vítima do sistema. Era o discurso da vitimologia, em uso no nosso arcabouço penal desde o fim da Segunda Grande Guerra e que teve no caso Doca Street um de seus maiores exemplos.

Ângela Diniz e Doca Street
Todos se lembram do crime da pantera Ângela Diniz, assassinada pelo seu marido Doca Street. No julgamento pelo Tribunal do Juri, na cidade de Cabo Frio, Rio de Ja-neiro, o advogado de defesa, saudoso Evandro Lins e Silva, sustentou, com êxito, que a vítima influenciou de forma decisiva para o evento, dada as suas ações provo-cadoras, representadas por afrontas, humilhações e insultos direcionados ao acusado. A expressão vitimologia, ou o crime precipitado pela vítima, foi pela primeira vez utilizada por Marvin Wolfgang, que publicou na Philadelphia, em 1956, um trabalho de pesquisa intitulado Patterns in Criminal Homicide, onde demonstra, empiricamente, de que há pessoas com tendências a se converter em vítimas, sempre desempenhando um papel de incitador da violência contra si mesmo, contribuindo com a ação do criminoso, seja pela inspiração ou facilitação do crime. Portanto, a vítima é sujeito ativo no crime perpetrado contra ela própria. Ela é partícipe e desenvolve forte influência no evento. Pois bem, no caso Floro, era preciso utilizar-se de um meio de comunicação, de preferência um jornal de grande circulação, que pudesse levar aos sergipanos depoimentos bombásticos contra autoridades e passar a imagem de um homem perseguido. Em três edições, o jornal Cinform publicou a longa entrevista da vítima, que negava a prática de todos os crimes de que era acusado e que tudo não passava de uma trama urdida para incriminá-lo, chegando a citar nomes de autoridades que tinham interesse em destruí-lo.

Sigmund Freud

Mas não bastava a entrevista. Era preciso dá-la repercussão. Os programas radiofônicos matinais foram bombardeados por entrevistas de porta-vozes e assessores da pretensa vítima das autoridades sergipanas. Em todas elas, tentava-se resgatar a “dignidade” de Floro Calheiros, colocando-o como um homem bom, um exemplar pai de família e que só estava tentando se defender de toda uma armação insana prepa-rada em Sergipe para denegrir a sua imagem. Mas deu tudo errado e o resultado foi a sua morte na cidade baiana de Barreiras. E por que nada deu certo? É que os engenheiros da estratégia não leram Freud, mais precisamente O Mal-Estar na Cultura, escrito por volta de 1930, considerado um dos mais perturbadores ensaios sobre o desenvolvimento cultural da humanidade. Toda e qualquer mudança no status quo deve ser precedida de um período chamado de amadurecimento cultural. A sociedade não está preparada para engolir goela abaixo decisões e conceitos inesperados. Ela precisa de um tempo para se adaptar à nova realidade. Como, de um dia pra noite, toda uma historia de crime patrocinado por Floro iria acabar no subconsciente coletivo? Nada se acaba num estalar de dedos. Segundo Freud, o indivíduo é inimigo da civilização, já que em todos os homens existem tendências destrutivas, anti-sociais e anti-culturais, ela, a civilização, é obrigada a travar uma luta constante contra o homem isolado e sua liberdade, até para substituir o poder daquele, o indivíduo, pelo poder da comunidade.
Millor Fernandes
Foi desastroso, portanto, todo o esquema utilizado no caso Floro. Esqueceu-se que do outro lado tinha um grupo de estudiosos e competentes Promotores de Justiça. Esqueceu-se que do outro lado tinha a sociedade, ainda traumatizada com o inexplicável atentado sofrido, não pelo Desembargador Luiz Mendonça, mas por um Poder instituído e imprescindível na democracia, o Judiciário. Sim, porque o crime foi ousado, desmoralizante, e pela segunda vez. Na primeira, atingiram o símbolo da vontade e da soberania popular – a urna, que foi roubada e depois queimada no município de Canindé do São Francisco. A democracia, nesses dois crimes, foi ultrajada e vilipendiada. O resultado da estupidez foi o adiamento do júri e o aperto do cerco a Floro Calheiros, culminado na sua morte no interior da Bahia. Se Floro nada devia, não participou de todo e qualquer crime, como dito nas entrevistas, o bom senso aconselhava a ele se entregar e responder aos processos instaurados. Se não acreditava nas autoridades sergipanas, que o fizesse perante o Ministério da Justiça. Preso e talvez mais tarde respondendo em liberdade, ele continuaria a dirigir os seus negócios. Floro, ao lançar mão do crime para justificar a perseguição sofrida, terminou justificando o principio da vitimologia na sua própria morte, contribuindo, ele próprio, para a ocorrência do evento. A estratégia arquitetada foi inopinada, despreparada, muito rápida e destituída de qualquer anteparo psicológico e, como bem dito por Millôr Fernandes, “chama-se de decisão rápida nossa capacidade de fazer besteira imediatamente”.

** Publicado no Jornal da Cidade, Edição de domingo e segunda-feira, 17 e 18 de abril de 2011, Caderno A, p. 7.

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