Aracaju/Se,

terça-feira, 3 de julho de 2012

Um sonho de liberdade

Artigo Pessoal

Um sonho de liberdade
Clóvis Barbosa

1963. 17 de outubro. Ainda se comemorava o bicampeonato que o Brasil, um ano antes, conquistara no Chile. Estava eu, adolescente imberbe, no meio da patuléia que se engalfinhava na entrada da Fonte Nova. Bahia e Botafogo digladiariam em instantes. O meu Bahia não era qualquer time. Vinte vezes campeão estadual até aquele momento. Primeiro campeão brasileiro, em 1959 (à época, o torneio se chamava Taça do Brasil). Derrotara, na final, o Santos de Coutinho e Pelé. Com efeito, o Bahia, que, na década de 1980, seria apelidado Tricolor de Aço, exibia um plantel com figuras medonhas: Nadinho, Hélio, Henrique, Gonzaga, Nilsinho, Florisvaldo, Agnaldo, Didico, Mário, Vadú e Miro. O Botafogo, por outro lado, não ficava para trás. Vinha com a estatura do pavor: Manga, Rildo, Zé Maria, Nilton Santos, Ivan, Ayrton, Édison, Garrincha, Quarentinha, Amarildo e Zagallo. Eu passara toda a manhã daquele dia trabalhando, na limpeza de seis escritórios do Edifício Rui Barbosa. Com o dinheiro do serviço, comprei meu ingresso para libertar-me e lavar a alma.

E lá estava eu, na fila das arquibancadas. Ingresso na mão. Mas de repente, não mais que de repente, um meliante, desapercebidamente, arrancou-me o ingresso das mãos, numa velocidade tal, a ponto de nem o Delegado de Polícia Flávio Albuquerque, se na fila estivesse, ser capaz de identificar e prender o autor daquele crime infinitamente qualificado (até porque o chefe dele é botafoguense). Então, o mundo, sempre ele, caiu sobre mim e me levou ao chão. E, parafraseando Drummond, se eu, ao invés de Clóvis, me chamasse Raimundo, isso não seria uma rima e, tampouco, uma solução. Chorei. Chorei tal qual o poeta inglês John Milton, que, cego, não enxergou a beleza de seu poema Paraíso Perdido. Eu não veria meu Bahia jogar. Também não veria a poesia que Garrincha escreveria no gramado da Fonte Nova, com suas pernas tortas. Decepção e lágrimas. Eu, que não tinha mais um único cruzeiro no bolso. Eu, que, para ver meu Bahia, me dispus a gastar tudo o que tinha e voltar, a pé, para o Bairro da Liberdade. Todavia, como nada é tão ruim, que não possa ficar pior, meu choro e meu lamento fez com que alguns torcedores começassem a me atacar. Chamaram-me de mentiroso. “Moleque safado. Quer que a gente tenha pena dele. Quer que a gente compre seu ingresso. Exploradorzinho”. Quando esbocei minha defesa, levei foi uma bofetada de um negrão, bem no pé do ouvido. E, novamente, fui para o chão. Seria aquele negrão um torcedor do Vitória?

Resignei-me. Mas de repente, não mais que de repente, uma moça. Ela aproximou-se. Agachou-se. Olhou-me nos olhos. Perguntou-me o que houve. Ouviu-me. Acreditou em mim. Subitamente, entretanto, seu namorado chegou, espumando e reprimindo-a. Gritou com ela. Ameaçou-a. Ela, indômita, levantou-se. Tirou seu ingresso da bolsa e o deu para mim. “Tome, menino, vá ver nosso Bahia ganhar”. O namorado empurrou-a. Disse algo de baixo calão contra ela, abandonando-a e entrando na Fonte Nova. A moça não desceu do salto. Procurou recompor-se e seguiu para o Balbininho, ao lado da Fonte Nova. Fiquei com o sentimento de culpa. Poderia ter acabado o namoro deles dois. Corri até ela. Desculpei-me. “Pegue, moça, não quero que você brigue com seu namorado”. “Ex-namorado”, corrigiu-me em tom grave, “Vá assistir ao jogo”. Corri para o meu sonho de liberdade. Vi o Bahia ganhar do Botafogo por 1 a 0. Gol de Miro. Após isso, fiquei, durante quase uma década, indo à Fonte Nova, para reencontrar aquela moça. Nunca mais a vi. Ela deu-me a liberdade. Mas acabou ficando só num sonho.

Década de 1990. Aracaju. MFC tinha apenas 8 anos. Eu presidia a OAB-SE. MFC e mais quatro menores arrombaram uma loja de eletrodomésticos do centro da capital. Era um feriado. Furtaram o dinheiro do caixa. Enquanto um deles, com o dinheiro, ia comprar lanches para todos, os demais transformaram a loja numa discoteca. Fizeram uma festa. Queriam libertar-se. Ligaram uma TV e começaram a assistir ao Xou da Xuxa. Imitavam a dança das Paquitas, cantando: “Bom estar com você, brincar com você. Deixar correr solto o que a gente quiser. Em qualquer faz-de-conta, a gente apronta. É bom ser moleque, enquanto puder. Ser super-humano. (...). Se tudo o que é livre é super-incrível. (...). A vida é um doce. Vida é mel, que escorre da boca, feito um doce: pedaço do céu.” Gritavam alegres. Foi um sonho. Enquanto durou. Acabado o Xou da Xuxa, voltaram para a realidade: a rua. Dois dias depois, enquanto dormiam sob a marquise de uma das lojas do centro, foram acordados por policiais: “Vamos passear?” O sonho de liberdade agora era um pesadelo. Foram assassinados pela jagunçada que algum imbecil chamava de polícia. Enquanto puderam, correram soltos, aprontaram, foram moleques, super-humanos. Mas a vida escorreu-lhes da boca. E o assassino, hoje, é quem dança, soltinho, seu pedaço do céu, como uma Paquita. Difícil saber, aliás, se atualmente nossa polícia trabalha por um sonho de liberdade.

2012. São Paulo. Cracolândia. Teresa Beatriz Viega. Uma quase septuagenária. Semblante descaído. Pernas inchadas. Passos curtos. Uma sacola na mão. Antes, ela virava a madrugada à procura do seu filho pelas ruas. Não o achará. Salvo em algum sonho de liberdade. Ele está preso. Foi acusado de tráfico. A polícia cidadã encontrou o suposto delinqüente com algumas pedras de crack. “Eu saía do serviço e vinha toda noite para cá ver João. Nem sempre o encontrava. Mas que filho não gosta de ver a mãe?” Dona Tereza permanece indo à Cracolândia. Não para ver o filho. Mas a barriga de Desirée, sua nora, e sonhar com o neto que está ali. Grávida de quatro meses, Desirée, 35 anos, também é viciada em crack. “Não sei nem se esse é o nome verdadeiro dela, mas não vou abandoná-la”, sussurra Tereza Beatriz. Dois jornalistas da Folha de S. Paulo acompanharam a procissão dos aflitos à qual Teresa se somou. Ela andou durante cerca de três horas à busca de Desirée. Achou-a numa pensão, perto da Estação da Luz. Desirée fuma crack desde os 12 anos. Acha difícil largar. Teresa, porém, não perde a esperança: “Você vai formar uma família comigo. Vai deixar tudo, sim.” Teresa é faxineira. Recebe uma pensão de R$622 e ganha R$70 por dia de trabalho.

Tragicômico. Eu, em 1963, limpei escritórios para garantir o ingresso que permitiria ver um sonho na Fonte Nova. MFC e sua turma, pelos idos de 1990, limpou o caixa de uma loja, comprou comida e dançou o Xou da Xuxa. Sonhou e a milícia o matou. Teresa limpa casas para assegurar o sonho de garantir ao neto um futuro diferente daquele com o qual a vida presenteou o pai. Todos sonhamos o mesmo sonho. O que me incomoda, no entanto, é que nem todos ficamos livres. A vida não é doce. A vida não é mel.

(**) Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo a quarta-feira, 19 a 22 de fevereiro de 2012, Caderno A, p.7.

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