Opinião
A beleza eterna de
Frineia
Clóvis
Barbosa
A beleza sempre
foi objeto de estudos. E de apreciação. Nada mais extasiante, por exemplo, que
o espetáculo de uma mulher nua. Já falei aqui sobre a nudez feminina e do que
ela é capaz, como aquela em que o rei Davi viu-se completamente hipnotizado
pela limpidez arquitetônica do corpo nu de Betsabeia. Deu no que deu. Está na
Bíblia. A Grécia antiga entendia de beleza, e a valorizava. Platão chegou a
questioná-la à medida que dava o seu conceito. Para ele, a beleza existe
separada do mundo sensível, sendo que uma coisa é mais ou menos bela conforme
sua participação na ideia suprema da beleza. Em outras palavras, “o belo” estava
na sabedoria. Já Sócrates o considerava pela concordância observada pelos olhos
e ouvidos. O próprio Homero, que fez apologia à irresistível beleza de Helena,
usou-a para responsabilizá-la pela Guerra de Troia. É claro que a beleza
obedece a padrões estéticos e que mudam de tempo a tempo, de acordo com os
valores culturais de uma determinada época. Teve um período, na própria Grécia
antiga, que o conceito da beleza estava associado ao homem. A mulher não era
colocada como protótipo do belo, até porque era tida como submissa e confinada
no lar. Com o desenvolvimento das artes, principalmente com a pintura e
escultura, um novo perfil surgiu para caracterizar aquela beleza onde a
harmonia se entrelaçava com as proporções. Era a estética. O filósofo espanhol José
Ortega y Gasset, na sua obra “Ensaios de Estética”, dizia que “Deus pôs a
beleza no mundo para que fosse roubada. Afinal de contas, o roubo é um ato de
admiração pelo objeto furtado e anda mais próximo do heroísmo que a civil e
tranquila fruição ao amparo das leis. Quando o objeto belo é uma mulher, a
incitação pelo rapto aumenta porque também, de certo modo, Deus pôs a mulher no
mundo para ser arrebatada. Não digo que seja assim, mas o que vamos fazer se
Deus dispôs as coisas dessa forma”.
Aliás, no seu
ensaio sobre Mona Lisa, Gasset começa
com a frase “A beleza foi colocada no mundo para ser roubada”. Essa frase foi
baseada em um fato ocorrido no começo do século XX, quando o famoso quadro de
Leonardo da Vinci foi roubado do Museu do Louvre por um funcionário do setor de
limpeza, o italiano Vicenzo Perugia. Aproveitando-se da sua condição de
empregado do Museu, “retirou a tela Mona Lisa de sua moldura, enrolou-a,
colocou-a embaixo do braço, saiu do Museu pela porta da frente, como se nada
tivesse acontecido, e foi para casa”. Lá, abriu uma garrafa de vinho e ficou a
olhar admirado o quadro por muitas horas. Repetia o gesto todas as vezes que
retornava ao seu lar e por mais de dois anos, até que resolveu vendê-lo ao
governo italiano, de onde, para ele, a peça nunca deveria ter saído. Mas, a
quantia solicitada foi tão irrisória que a justiça italiana resolveu investigar
e descobriu o crime praticado por Perugia. Claro que a obra, admirada há mais
de 500 anos, foi devolvida à França. Na verdade, a tese de que a beleza foi
colocada no mundo para ser roubada não é defendida somente por Gasset, mas, como
bem dito por Ricardo Araújo, na introdução da obra citada, por Edgar Allan Poe
(A Trapaçaria e A Carta Furtada), Oscar Wilde (A
Decadência da Mentira), Robert Louis Stevenson (O Clube dos Suicidas), Thomas de Quincey (Do Assassinato como uma das Belas-Artes) e Chesterton (Contos do Padre Brown). Bom, concordemos
ou não, aos nossos olhos, a beleza da mulher nasce da divindade e a verdade é
que ninguém resiste ao perfume que a nudez feminina é
capaz de borrifar. Nunca, na história, uma beleza de mulher foi tão cantada e
tão exaltada como a de Frineia, uma menina
pobre que na sua infância, para sobreviver, colhia alcaparras e adulta,
transformou-se numa cortesã vivendo maior parte de sua vida em Atenas por volta
do ano 400 a.C.
Para a
historiadora Vicki León, “sua pele sedosa cor de oliva, seu rosto de olhos
sonhadores e suas formas generosamente femininas, todavia quase inocentes, fizeram dela a Marilyn Monroe da antiguidade”. A
sua beleza contagiou o pintor Apeles, que a retratou em um famoso quadro denominado Afrodite surgindo das ondas, e Praxíteles, um
escultor renomado de então, esculpiu uma Frineia completamente nua, o que foi motivo de muita inveja de um lado e muita babação de outro, pelo
menos durante três séculos, até quando o inusitado aconteceu: ela foi roubada
por Calígula. A beleza e a fama dessa prostituta da antiguidade atravessaram
séculos sendo reverenciadas até os dias atuais. Além de Apeles e Praxíteles,
para quem pousou como modelo para um quadro e uma escultura que se tornaram
famosos, ela inspirou a pintura do artista Jean-Léon Gérôme, em 1861, na obra Friné devant l’Areopage, as poesias de
Baudelaire, em Lesbos e La Beauté, e Rainer Maria Rilke, em Die Flamingos. Foi até objeto de uma
ópera famosa de Camille Saint-Saëns, Phryne,
de 1893. No cinema, a sua beleza foi representada em um filme de 1951, dirigido
por Alessandro Blasetti, Al tri tempi,
onde o último episódio é Il processo di
Frine. Até um asteroide, descoberto em 1933, teve como registro a beleza de
Frineia, com o nome 1291 Phryne. O
dinheiro que ela faturou durante a sua vida de amante de figuras famosas da
Grécia Antiga, aproveitando-se de sua extraordinária beleza, investiu em
estátuas de si mesma. Para se ter uma ideia, uma delas repousa “recatadamente” em
um dos espaços do Vaticano. Na sua obra, Biografia
da Prostituição, Mariano Tudela, afirma que "Frineia
passou à História como uma prostituta de enorme beleza e foi imortalizada por
artistas como Apeles e Praxíteles, dado que, segundo a lenda, sua graça
sobrepuja a mais ardente imaginação”.
Mas foi um poeta
brasileiro, Olavo Bilac, em sua obra Sarças
de Fogo, que prestou uma bela homenagem à beleza dessa mulher ateniense, no
poema O Julgamento de Frineia:
“Mnezarete,
a divina, a pálida Frineia,
Comparece ante a austera e rígida assembléia
Do Areópago supremo. A Grécia inteira admira
Aquela formosura original, que inspira
E dá vida ao genial cinzel de Praxíteles,
De Hiperides à voz e à palheta de Apeles.
Quando os vinhos, na orgia, os convivas exaltam
E das roupas, enfim, livres os corpos saltam,
Nenhuma hetera sabe a primorosa taça,
Transbordante de Cós, erguer com maior graça,
Nem mostrar, a sorrir, com mais gentil meneio,
Mais formoso quadril, nem mais nevado seio.
Estremecem no altar, ao contemplá-la, os deuses,
Nua, entre aclamações, nos festivais de Elêusis...
Basta um rápido olhar provocante e lascivo:
Quem na fronte o sentiu curva a fronte, cativo...
Nada iguala o poder de suas mãos pequenas:
Basta um gesto, — e a seus pés roja-se humilde Atenas...
Vai ser julgada. Um véu, tornando inda mais bela
Sua oculta nudez, mal os encantos vela,
Mal a nudez oculta e sensual disfarça.
Cai-lhe, espáduas abaixo, a cabeleira esparsa...
Queda-se a multidão. Ergue-se Eutias. Fala,
E incita o tribunal severo a condená-la:
‘Elêusis profanou! É falsa e dissoluta,
Leva ao lar a cizânia e as famílias enluta!
Dos deuses zomba! É ímpia! é má!" (E o pranto ardente
Corre nas faces dela, em fios, lentamente...)
Por onde os passos move a corrupção se espraia,
E estende-se a discórdia! Heliastes! condenai-a!’
Vacila o tribunal, ouvindo a voz que o doma...
Mas, de pronto, entre a turba Hiperides assoma,
Defende-lhe a inocência, exclama, exora, pede,
Suplica, ordena, exige... O Areópago não cede.
‘Pois condenai-a agora!’ E à ré, que treme, a branca
Túnica despedaça, e o véu, que a encobre, arranca...
Pasmam subitamente os juízes deslumbrados,
— Leões pelo calmo olhar de um domador curvados:
Nua e branca, de pé, patente à luz do dia
Todo o corpo ideal, Frineia aparecia
Diante da multidão atônita e surpresa,
No triunfo imortal da Carne e da Beleza”.
O poema, como se
vê, narra a história de uma cortesã grega, Mnezarete,
nome de batismo de Frineia, que foi levada ao Areópago
porque estaria corrompendo a moral das famílias helênicas. O acusador, Eutias,
exige a condenação de Frineia, valendo-se de um argumento moral. Afinal de
contas, certos acusadores sempre apelam para uma moral tão vagabunda quanto ele, a fim de que seus pontos-de-vista, quase
sempre tacanhos, prosperem. Passada a acusação, o povo quer Frineia condenada.
Os juízes querem Frineia condenada. É a vez da defesa. Fala o advogado,
Hiperides, cujo timbre de voz se confunde com o sabor da liberdade. Ainda assim
os espectadores permanecem irresignados. Frineia capitulará. Desse modo,
Hiperides apela para o profano.
Arranca a roupa de Frineia, deixando-a magnificamente
nua. Nua e reluzente. E o Areópago, em apoteose, prolata uma sentença de absolvição. De fato, o profano, sabiamente,
às vezes traspassa o jurídico. O argumento profano vem da cabeça do homem
ponderado, do homem que enxerga o direito dentro de um sistema que consagra
outros valores. O argumento profano, assim como a nudez de Frineia, deixa a “multidão atônita e surpresa, no triunfo imortal
da carne e da beleza”.
- Publicado no
Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de 7 de maio de 2016, Caderno A-7.
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