domingo, 25 de agosto de 2019
A morte da Lei de Imprensa
Opinião
A Morte da Lei de
Imprensa
Clóvis Barbosa
A imprensa deve
ser livre e, às vezes, dissoluta. A liberdade de imprensa, contudo, passa por
um quadro de sedimentação sociológica. Quanto mais evoluída uma civilização,
mais livre sua imprensa. Daí poder chegar-se à conclusão de que ditaduras
refletem involuções. No mais, ditadores morrem afogados no próprio vômito. A
inflexibilidade da ditadura é causa principal de sua ruína. Quando não aguenta
a tensão daqueles que querem impor um regime democrático, ela se despedaça.
Ditadores, no entanto, são bons em matemática. Esse é o mundo no qual eles,
melhor do que ninguém, sabem dar as cartas: o dos números. Se você der um troco
errado para um democrata, ele verá no erro uma espécie de contribuição com a
melhor distribuição de renda. Mas se você der um troco errado para um ditador,
ele pensará que você é burro ou quer intervir no patrimônio dele, algo passível
de pena capital. O ditador, no fundo, é um frágil com bases narcísicas
estilhaçadas. Os tiranos reprimem a imprensa porque a temem. Covardia. Homens
corajosos não reprimem os inimigos, e sim os enfrentam. Homens corajosos e
fortes enfrentam e derrotam. Por isso, não abro mão do que disse. A imprensa,
além de livre, deve ser dissoluta. Nem sempre, só às vezes. Mas que deve, deve.
Aprendi com H. L. Mencken que “imoralidade é a moralidade daqueles que estão se
divertindo mais do que nós”. E qual o sentido da mídia se ela não for ácida? De
uma acidez tal que seja capaz de fazer com que o leitor não consiga controlar o
riso? Imbecis costumam dizer que jornalistas são pessimistas. Bobagem. Paulo
Francis estava certo quando disse que “todo otimista é um mal informado”.
Dario, comandante militar de Ciro, era otimista. E, por causa disso, Daniel
quase se deu mal.
Está tudo ali, no
livro que leva o nome do profeta. Capítulo 6. Dario, objetivando promover um
processo de descentralização administrativa, nomeou 120 governadores, acima dos
quais havia três ministros. Dentre os ministros, o mais prestigiado era Daniel.
Com inveja, os demais induziram o monarca a assinar uma lei que condenava à
cova dos leões todo aquele que, durante 30 dias, adorasse outra entidade que
não fosse o próprio Dario. O rei, crendo que estava fazendo algo bom para sua
popularidade, assinou o ato irrevogável. Daniel, todavia, honrava mais o seu
deus do que o rei. Desconsiderando a tal lei, por conseguinte, chegou em casa e
foi orar. Os invejosos o denunciaram a Dario que, deprimido, não pôde fazer
nada, além de determinar que Daniel fosse jogado na cova dos leões. Sucede que
Daniel foi salvo por intervenção divina. E o rei, como vingança, condenou à
morte aqueles que invejavam Daniel. É... de fato, a boa-vontade algumas vezes
pode resultar em tragédias. A intenção do rei era nobre: enaltecer seu nome
entre os governados. Nada de formidável. Mas, não fosse a fé de Daniel, o
resultado teria sido o inverso: a desgraça de Dario, que perderia seu mais
capaz ministro. Isso prova que a majestade também pode não captar todas as
consequências de uma decisão por ela prolatada. Foi o que se deu em 2009 quando
o Supremo Tribunal Federal, a partir de uma arguição de descumprimento de
preceitos fundamentais proposta pelo PDT, decidiu pela inconstitucionalidade da
Lei nº 5.250, de 1967, a chamada Lei de Imprensa, afastando-a de forma
definitiva da ordem jurídica brasileira. Um dos argumentos suscitados à época
era que a lei fazia parte do entulho autoritário, pois editada no período
ditatorial, não tendo sido recepcionada pela constituição de 1988.
Tudo bem. O Código
Penal também veio à luz num período não muito democrático. Menos ditatorial do
que aquele em que nasceu a Lei de Imprensa.
Mas, nem por isso, libertário. Ainda assim, os generais da ditadura deram aos
jornalistas um tratamento melhor. Como foi dito acima, ditadores entendem mais
de matemática do que democratas. Um exemplo vai elucidar a questão: o
jornalista que calunia um servidor público através de um veículo de
comunicação, pelo artigo 20 da revogada Lei de Imprensa, seria sancionado com
uma pena que iria de seis meses a três anos de detenção, podendo chegar a
quatro anos por ter sido o crime praticado contra servidor. Pouco importa.
Segundo o seu artigo 41, esse crime estaria prescrito em dois anos e pronto.
Porém, com a decisão do STF, a conduta do jornalista passou para o art. 138 do Código
Penal (calúnia): detenção de seis meses a dois anos, podendo o máximo atingir
dois anos e oito meses, por ter sido o crime praticado contra servidor.
Prescrição? Oito anos! É o que diz o código penal. Resultado: a morte da Lei de
Imprensa matou também os jornalistas. Na sua vigência, o menos hábil dos
advogados conduziria qualquer processo para a prescrição. Todo processo desse
tipo durava muito mais do que dois anos. Com a nova realidade, isso ficou
praticamente impossível. Oito anos são oito anos. Isso é matemática. As razões
que inspiraram os senhores ministros do Supremo Tribunal Federal, naquele ano
de 2009, foram democráticas, doutas, libertárias. Mas erraram no cálculo. Foi
um tiro na mão, já que jornalista não escreve com o pé. Quando os profissionais
da informação entenderem a matemática do problema, vingará novamente o gênio de
Paulo Francis: “o mal da imprensa é que ela não ousa mais desagradar o leitor”.
Desagradar: eis o
papel da imprensa livre. Mas o receio causado pelo hiato decorrente da
declaração de não recepção da Lei de Imprensa, sem um anteparo que ofertasse segurança
aos jornalistas, roubará deles a energia. Ou não. Afinal, estamos em 2016 e,
até agora, nenhuma legislação nova veio reparar a injustiça causada pela
declaração de incompatibilidade com a atual ordem constitucional. Esse,
entretanto, não é o único impasse. Há outros, a exemplo das vantagens que a Lei
de Imprensa outorgava com os institutos da decadência, da retratação, etc.
Aqui, iniciei o debate, que deverá protrair-se no tempo, para abordar,
inclusive, as consequências da decisão no cível. Esse introito foi mais
metafórico e ilustrativo, procurando atender a uma finalidade didática.
Demonstramos o equívoco desse ponto de vista em vários artigos publicados na
época. Ainda assim, houve quem discordasse em parte da nossa postura, lançando
mão de argumentos tipicamente retóricos: “a Lei de Imprensa é um resíduo da
ditadura”, “a Lei de Imprensa está na escuridão dos calabouços em que militares
torturavam jornalistas”, etc. Teria sido mesmo? Procurei dialética nesses
postulados. Mas não há. Raciocinemos, portanto (e o STF já sinalizou para essa
consequência natural): expurgada a Lei de Imprensa, sobejará o que para os
jornalistas, em sede de abuso na liberdade de manifestação do pensamento? Resposta:
o restante do ordenamento. Vale dizer, o Código Penal, o Código Civil, a
própria Constituição. E algo precisa ser categorizado, com menos poesias e mais
prosa: a CF assegura, no art. 5°, inciso IV, que é livre a manifestação do
pensamento. Contudo, a mesma CF, no mesmo artigo, desta feita no inciso X,
apregoa que a violação da imagem das pessoas gerará direito a indenização pelo
dano material ou moral dela decorrente.
Por conseguinte,
ainda que não haja Lei de Imprensa para “censurar” jornalistas, haverá um Código
Penal e haverá um Código Civil. Daí a indagação: que vantagens os jornalistas tiveram
com a eliminação da Lei de Imprensa? Sinceramente, não sei. Mas permita-me
apontar as inúmeras desvantagens, dando especial enfoque ao aspecto penal,
certamente o que mais interessa aos jornalistas, radialistas, etc. (01) Pela
Lei de Imprensa, alguém que, supostamente, tivesse sido ofendido por um jornalista,
teria no campo penal três meses para ajuizar queixa-crime ou ofertar
representação criminal; pelo Código Penal, o prazo é maior, seis meses. Perde o
jornalista com o prazo mais elástico. (02) A prescrição, pela Lei de Imprensa, como
já dito, independentemente da pena a ser aplicada, ocorre em dois anos; pelo
código penal, poderá chegar a oito. E nem venham dizer que, como o STF não
suspendeu o art. 41 da Lei de Imprensa, embora se aplique o Código Penal, o
prazo prescricional continuaria sendo o de dois anos. Nada disso. O STF já
decidiu que não pode o magistrado misturar o que há de bom em uma lei com o que
há de melhor em outra, sob pena de fazer as vezes de legislador. Ou aplica uma
lei na íntegra, ou outra, também na íntegra. Sobrou o Código Penal. Quem ganhou
com isso? Não sei. Só sei que os jornalistas soçobraram. (03) Pelo art. 43, §
1º, da Lei de Imprensa, o juiz, antes de decidir se recebia, ou não, a queixa
ou denúncia, garantiria ao jornalista uma defesa prévia, grande oportunidade de
convencer o magistrado acerca da inexistência de qualquer ilícito, impedindo o
desenvolvimento do processo. Extirpada a Lei de Imprensa, acabou a prerrogativa,
mas, mesmo assim, a morte da legislação trouxe euforia à classe.
(04) Pelo art. 73
da Lei de Imprensa, só havia reincidência específica, ou seja, só seria considerado
reincidente o jornalista que já tivesse contra si prolatada, e com trânsito em
julgado, sentença condenatória por outro crime de imprensa, ou seja, da mesma
natureza do antecedente. Diante disso,
pergunto por que os encômios? Paciência! Mas essa conversa de que a Lei de
Imprensa foi concebida na ditadura é verborragia. O mentor da Lei de Imprensa,
Freitas Nobre, a concebeu anos antes do golpe militar de 1964, tendo sido um
dos maiores defensores das liberdades. Aliás, foi perseguido por isso. Intrigante
é que toda essa quizila sobre a Lei foi conduzida à revelia da biografia de
Freitas Nobre. Em 25 de outubro de 2005, por ocasião da passagem dos trinta
anos da morte do jornalista Vladimir Herzog, o nome de Nobre foi lembrado de forma
honorífica como defensor da imprensa, a mesma que vibrou e aplaudiu o STF com o
extermínio de sua lei, que achou o Código Penal melhor do que a lei que nasceu
para protegê-la. Abestalho-me! O Código Penal saiu da cabeça de um grande
jurista: Nelson Hungria. Mas ele veio à tona em um período eminentemente
ditatorial. Hungria foi nomeado Ministro do STF por um ditador: Getúlio Vargas.
O grande Nelson Hungria manchou sua biografia com um episódio patético, em que
rasgou uma decisão judicial, prolatando outra em seu lugar para agradar um
sociopata, que fez história na pior fase da imprensa brasileira: Assis
Chateaubriand. Diploma ditatorial por diploma ditatorial, fico com a Lei de
Imprensa. Fico com Freitas Nobre. Fico com Vladimir Herzog. A Lei de Imprensa
morreu. A sua derrocada interessou mais aos seus inimigos. E, como ensinava
Walter Benjamin, “se o inimigo vence, nem os mortos estão seguros”.
- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de 24 de julho de 2016, Caderno A-6.
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