sábado, 10 de agosto de 2019
Sobral Pinto - A Consciência do Brasil
Sobral Pinto
A Consciência do Brasil
Clóvis
Barbosa
John
W. F. Dulles foi professor de Estudos Latino-Americanos na Universidade do
Texas. Como estudioso e catedrático de política brasileira, publicou cerca de
nove livros abordando temas e figuras políticas do país, sendo o conjunto de
sua obra prenhe de informações importantes para a nossa historiografia.
Causou-me curiosidade uma de suas obras, que adquiri anos atrás numa feira de
livro da Praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema: Sobral Pinto, A Consciência do Brasil, Editora Nova Fronteira, 430
páginas. Impressionou-me a relação do grande advogado Sobral Pinto com figuras
importantes do nosso Sergipe. No início da década de 1980, fui seu colega no
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Era presidente da Entidade Nacional
o advogado paulista Mário Sérgio Duarte Garcia e a seção de Sergipe da OAB era
presidida pelo professor Silvério Leite Fontes. Estivemos juntos por dois anos,
mas confesso que foram poucos os contatos que mantive com ele, até porque, à
época, existia um preconceito contra conselheiros originários dos próprios
Estados, até então representados por advogados medalhões radicados no Rio de
Janeiro. Sergipe e poucos outros Estados modificaram essa sistemática de
representação a partir da gestão Mário Sérgio Duarte Garcia, que recebeu
oposição de vários conselheiros, inclusive de Evandro Lins e Silva. Sobral
Pinto estimulou equivocadamente esse tipo de preconceito. É bem verdade que, posteriormente,
Evandro e outros conselheiros reconheceram o erro. Nesse período, os meus
maiores contatos no Conselho Federal eram Victor Nunes Leal (quanta saudade!),
Heleno Fragoso, Bernardo Cabral, Hermann de Assis Baeta, Sepúlveda Pertence,
Arthur Lavigne e Nilo Batista.
Sobral
Pinto foi amigo inseparável do líder leigo dos católicos, o sergipano Jackson
de Figueiredo (1891/1928). Conheceram-se no gabinete de Affonso Pena Júnior,
Ministro da Justiça do governo de Arthur Bernardes, de quem eram conselheiros.
Partilharam da mesma antipatia e desgosto que tinham por outro sergipano,
Gilberto Amado. Foi aí que Sobral começou a se enfronhar com a política de
Sergipe e personalidades sergipanas, permanecendo essa relação até a década de
1970, seja na política, seja na prestação de serviços advocatícios. A amizade
entre Jackson e Sobral era intensa. Tornaram-se compadres, e eram aficionados
das caminhadas noturnas pela praia de Ipanema. Dessas andanças, também
participava outro sergipano, José Barreto Filho, que estava no Rio estudando
Direito e que mais tarde tornar-se-ia Secretário do Chefe de Polícia do Rio de
Janeiro, Coriolano de Góes, de 1926 a 1930. A amizade entre Jackson e Sobral só
foi interrompida em 1928, quando o primeiro morreu afogado enquanto pescava na
Barra da Tijuca. Em 1934, Sobral era Secretário–Geral da Liga Eleitoral
Católica (LEC) e direcionava a sua curiosidade política para Sergipe. Em carta
enviada ao médico Augusto César Leite, líder da União Republicana de Sergipe
(URS), que era apoiada pela LEC, pediu o seu apoio à candidatura de Erônides de
Carvalho, um médico do Exército, ao governo de Sergipe. O pedido deu certo,
tendo Erônides sido eleito deputado federal, e, mais tarde, reunida a Assembleia
Constituinte Estadual, foi o mesmo escolhido Governador do Estado. Erônides
derrotou o então Capitão Augusto Maynard Gomes, aliado roxo do getulismo, então
interventor de Sergipe e que teria uma longa carreira política.
Sobral
foi também o responsável pelo parecer que definia a autoridade do novo
governador antes da conclusão da constituição pela Assembleia Legislativa. O
entendimento firmado por ele foi aprovado por 15 dos 17 desembargadores do
Tribunal de Justiça de Sergipe. Empenhou-se, também, para que duas vagas
remanescentes de Deputado Federal (Erônides foi ser governador, Augusto Leite e
Leandro Maciel, também eleitos para a Câmara Federal, foram nomeados pela Assembleia
Constituinte Estadual para o Senado) fossem destinadas ao deputado estadual
José Barreto Filho, seu amigo de caminhada na praia de Ipanema, e para o
advogado e romancista Amando Fontes, apesar da oposição de Lourival Fontes,
também sergipano, futuro chefe do Departamento de Propaganda e Difusão Cultural
do governo Vargas. Embora a sua incursão na política de Sergipe em favor de
Erônides, José Barreto Filho e Amando Fontes fosse coberta de êxito, Sobral
Pinto decepcionou-se logo com as atitudes dos seus apadrinhados, que passaram
para o lado de Getúlio Vargas e Lourival Fontes, o que o levou a dizer a
Erônides, em carta, que a política sergipana se caracterizava por atitudes
fracas, desorientadas e pouco leais. Depois, em carta a José Barreto Filho,
disse estar encerrando definitivamente suas incursões na política de Sergipe,
cujos dirigentes, “grosseiros, mal-educados,
vulgarmente ambiciosos” lhe deixaram “a
mais nojenta das impressões”. Outro fato interessante ocorreu em 1943,
quando o ex-governador de Sergipe, Graccho Cardoso, procurou Sobral para que o
mesmo defendesse o diretor da Aviação Condor, subsidiária da Lufthansa alemã,
de nome Ernest Holck.
Como
estava defendendo um empregado subalterno da Companhia, Aulette Albuquerque
Silva do Valle, ele recusou o patrocínio da causa e sugeriu o nome de Evandro
Lins e Silva para defender o amigo de Graccho Cardoso. Apesar dos êxitos
obtidos na defesa do seu cliente, recebeu um sonoro xexo de Cr$ 4.800 cruzeiros, dos Cr$ 10.000 cruzeiros cobrados, ou
melhor, fixados pelo próprio Aulette, enquanto Lins e Silva recebeu Cr$ 25.000
cruzeiros. Mas essa era uma característica de Sobral Pinto, o desinteresse por
bens materiais. Curioso, também, que John W. F. Dulles, na bibliografia
utilizada para escrever o seu trabalho sobre um dos mais destacados advogados
do país, utilizou-se de obras sergipanas escritas pelos historiadores Ibarê
Dantas (Os Partidos Políticos em Sergipe,
de 1889 a 1964), Ariosvaldo Figueiredo (História
Política de Sergipe) e J. Pires Winne (História
de Sergipe). Outros fatos marcantes são contados, mas, como o livro aborda
o período de 1930 a 1945, após esta data ficamos, ainda, desconhecendo a
relação de Sobral Pinto com políticos e cidadãos sergipanos, e sua participação
em processos de grande repercussão, como o do crime do médico Carlos Firpo,
ocorrido em Aracaju no ano de 1959. Heráclito Fontoura Sobral Pinto faleceu aos
98 anos, em 1991, sendo, apesar de uma figura controvertida, uma pessoa
apaixonante, ou como diria Victor Nunes Leal, ministro do Supremo Tribunal
Federal cassado pela ditadura Militar, Sobral era “... a consciência de cada um de nós naqueles frágeis momentos em que a
nossa entra em colapso pela paixão, pelo medo, pela ira, pela insegurança, pela
ambição, pela vaidade e até pelos desvios menores que por vezes descompassam as
personalidades mais bem formadas”.
O
jornalista capixaba Rubem Braga, nos anos 30, chegou ao ponto de descrevê-lo
como um “monstro”, dada a sua
relevância no mundo jurídico brasileiro e participação ativa nos movimentos
políticos e culturais da época. Mas, em verdade, Heráclito Fontoura Sobral
Pinto foi um dos nomes mais importantes do século passado. Notabilizou-se em
várias áreas, principalmente nos embates que travou contra a ditadura do Estado
Novo, de 1937 a 1945, e o regime militar instaurado no país a partir de 1964,
indo até 1985. Gritava e protestava contra as condições cruéis e infames das
prisões, expunha as violações das leis, atacava a incomunicabilidade dos presos
e era um inimigo das torturas praticadas nos porões desses regimes de exceção.
Ligado até os dentes ao catolicismo, tinha radical divergência com o comunismo materialista, no entanto isso
não impediu que ele defendesse os presos políticos Luiz Carlos Prestes e Harry
Berger. Sobral foi um desses raros exemplos da espécie humana. No caso de
Berger, que havia sido torturado nos porões da ditadura de Vargas, exigiu do
governo a aplicação do artigo 14 da Lei de Proteção aos Animais, em defesa do
tratamento humanitário do seu cliente. Era um homem simples e sem ambições. Legalista
fervoroso, foi um dos primeiros a defender a posse de Juscelino Kubitschek num
momento em que o golpismo tomava conta do país, onde figuras políticas
derrotadas nas urnas tentavam anular no tapetão a vitória legítima do
presidente eleito. Com a posse reconhecida, foi convidado para exercer o cargo
de Ministro do STF, mas recusou. Atuou, ainda, como advogado de Miguel Arraes,
Francisco Julião, João Pinheiro Neto e tantos outros famosos nomes.
Evandro
Lins e Silva, outro grande nome da advocacia brasileira, tinha Sobral Pinto
como ídolo. A aproximação de ambos ocorreu durante o tormentoso período do
Estado Novo nos corredores do Tribunal de Segurança Nacional, órgão de exceção
criado para julgar os adversários do regime. Disse Evandro sobre Sobral, em sua
obra Arca de Guardados: “Sobral Pinto
deu lições de galhardia, de amor ao próximo, de uma rara compreensão do dever
de assistência moral e pessoal aos acusados, assistência cujo valor é preciso
não subestimar. Nas horas agudas da repressão política, a intolerância é
ilimitada e é cega e bruta a ação dos verdugos. Sobral Pinto viveu grandes
instantes de sua carreira naquele esdrúxulo pretório. E, advogado vitorioso,
aclamado e aplaudido pelos colegas de todos os recantos da terra, morreu na
pobreza mais franciscana. Deixou uma legenda de altruísmo, de abnegação, de
honradez. Sim, Sobral Pinto foi diferente, foi uma anomalia, foi um portento, foi
enorme, Rubem Braga teve razão – foi um monstro”. Por mais intransigentes que fossem
os seus adversários, nenhum deles deixava de reconhecê-lo como uma das maiores
forças morais do Brasil do século XX. Era um homem comprometido com a valorização
do ser humano, vinculado a uma corrente filosófica que privilegiava a justiça
social, a razão humana e a ética. Victor Nunes Leal tinha razão. Sobral era a
Consciência do Brasil.
- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de 10/07/2016, Caderno A-6.
- As fotos foram retirados do Google.
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