Aracaju/Se,

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Um Cão Andaluz

Artigo Pessoal

Um Cão Andaluz
Clóvis Barbosa

Um Cão Andaluz foi o filme de estréia de Luis Buñuel, que contou com a colaboração do artista Salvador Dali. Lançado em 1928, é um dos marcos da cinematografia mundial, cuja imagem que ainda hoje é lembrada como impactante e pavorosa é o de uma navalha cortando um globo ocular. Lembrei-me desse filme no dia de ontem ao ler a “autobiografia” de Alice B. Toklas, escrita por Gertrude Stein, o grande amor de sua vida. É que Gertrude foi viver em Paris nos anos de 1920 e coube a ela a invenção da expressão “geração perdida”, aplicada aos artistas que viveram naquela década na capital francesa. Confesso que sou emotivo. Quando visitei recentemente Paris, chorei ao divisar a casa de número 27 da Rue de Fleurus, no complexo Montparnasse. Era uma noite muita fria e poucas pessoas andavam no local. Eu estava sozinho a imaginar Picasso (dizem que foi uma descoberta de Stein), Ernest Hemingway, Matisse, Scott Fitzgerald, Jean Cocteau, Apollinaire e tantos outros entrando naquela casa. Entrei num pequeno bar e pedi um conhaque. Tomei de uma só golada e fui embora, deixando a casa para trás. Eu tinha andado muito. Praticamente caminhei de Alesia até o final de linha onde tinha uma estação de trem ou terminal de ônibus. Depois voltei para Alesia e fui caminhando por toda a Avenue Maine. No retorno, pela mesma avenida, um turbilhão de imagens passou pela minha cabeça. A minha infância pobre no pobre Bairro da Liberdade, em Salvador de Bahia, andando em ruas e trechos com nomes curiosos, como Ladeira de Pedra, Curuzu, Largo da Central, Baixo da Gengibirra, Ladeira do Inferno, Largo do Tanque, Fim de Linha da Liberdade, etc.

Ernest
Hemingway


F. Scott
Fitzgerald

Lembrava-me daquele menino raquítico, que era chamado de amarelo empapuçado, com 13 anos e já trabalhando para ajudar a família de dez irmãos na época; estudava pela tarde e trabalhava pela manhã numa loja na Baixa do Sapateiro; aos sábados à tarde ganhava uns trocados vendendo gibis na porta do cinema Santo Antônio e aos domingos passava cera em sete escritórios no Ed. Rui Barbosa; a minha alegria quando passei no exame de admissão do Instituto Normal Isaias Alves; minhas noites no Instituto Goeth, Teatro Vila Velha, Cine Rio Vermelho, Concha Acústica do Teatro Castro Alves, programas de auditório na Rádio Sociedade da Bahia e Rádio Excelsior, no Clube de Cinema da Bahia, carnaval no Clube Palmeiras da Barra Avenida; tentativas, muitas vezes frustradas, de furar o bloqueio do Fantoches, Iate Clube e Clube Espanhol nos bailes de carnaval; e Aracaju quando aqui cheguei com as suas marinetes e kombis fazendo o transporte coletivo; os meus primeiros amigos, a Jovreu, Editora Jovens Reunidos, o Clube de Cinema de Sergipe, a Faculdade de Direito, a advocacia, a Universidade Federal de Sergipe, a Prefeitura de Aracaju, o Governo do Estado, lugares onde deixei a minha energia pela inteireza da minha dedicação; o saudoso Cacique chá; o cachorro quente de Seu João, vizinho à Catedral; a moqueca de camarão do Bairro Soledade; o churrasco de Carioca na Rua Porto Alegre com Pernambuco, onde cada pedaço de carne ou de osso era disputado com os olhares tristes dos cães que rodeavam a pequena churrasqueira; a sopa mão de vaca de Luis Ponta de Ouro, no Bairro Santo Antônio.

Eram recordações de dias tristes e felizes. Mas é isso: a felicidade é sempre amarga, como o sol é ilusório. Releio Kafka. A Metamorfose. Pela décima vez? Não sei se mais ou menos. Não quero saber do conceito que Theodor Adorno, da Escola de Frankfurt, de Georg Lukács e de Freud sobre a obra kafkaniana. A Metamorfose e O Veredicto eu estraçalho em um dia. Invado o mundo de Georg Bende (Mann) e Gregor Samsa. Pronto! Falei em contos, lá vem as lembranças: Ezequiel Monteiro. Tudo bem, não precisam ficar nervosos. Eu sei que Luiz Eduardo Costa é brilhante e tantos e tantos outros que desfilam com as suas penas nos jornais de Sergipe. Mas, por favor, não confundam as coisas. Eu sei que não sou crítico literário, mas tenho bom senso. Certa vez tive uma discussão com um professor de teoria literária. Lá pras tantas eu achei de defender a tese de que Chico Buarque e Vinícius de Moraes eram poetas com “p” maiúsculo e que nada ficavam a dever aos grandes poetas brasileiros. Pronto, o mundo desabou sobre mim e a minha ignorância. Isso tem uns quinze anos aproximadamente. Pois bem, hoje, a intelligentsia brasileira já reconhece Vinícius como um grande poeta. Aliás, quando vou ao Rio de Janeiro, quem quiser me encontrar pode ir na Toca do Vinícius, na Rua Vinícius de Moraes, em Ipanema. Ali eu recebo aulas de Teoria Literária de um professor aposentado da Universidade Federal Fluminense, que por prazer, toca a Toca. Um dia eu disse a um colega que se diz meu ex-amigo: meu irmão, você já viu o texto de Ezequiel Monteiro no Jornal da Cidade? Esse cara é um louco, ele é kafkaniano.


Franz Kafka

Florbela Espanca

E continuava enfático defendendo o talento de Ezequiel. Não fui feliz na minha abordagem. Não tinha com quem discutir. Peguei uns quinze artigos de Ezequiel e guardei. Na próxima viagem ao Rio vou levá-los para discutir com meu amigo professor de teoria literária. E o pior é que estou com saudade do seu texto, principalmente dos seus gostosos contos, cheios de mágoas pelos amores perdidos ou impossíveis que faz-nos lembrar a poesia de Florbela Espanca: “Eu sou a que no mundo anda perdida, eu sou a que na vida não tem norte, sou a Irmã do Sonho, e desta sorte sou a crucificada, a dolorida (...). Sou aquela que passa e ninguém vê, sou a que chamam triste sem o ser, sou a que chora sem saber porquê. Sou talvez a visão que Alguém sonhou, Alguém que veio ao mundo pra me ver e que nunca na vida me encontrou”. Jean Vigo, cineasta francês e de curta carreira, ao se reportar sobre a imagem contida no filme de Buñuel, afirmou que “essa imagem é mais pavorosa do que o espetáculo de uma nuvem tapando uma lua cheia”. Um Cão Andaluz, também é retocado por uma coleção de imagens sem qualquer conexão, impactantes e contraditórias. O que dizer de um cavalo morto em um piano? o que falar de formigas saindo da mão de alguém? Bem, a verdade é que este filme é considerado revolucionário na história do cinema, pois rompe com toda a lógica e linearidade narrativa existente nos filmes daquela época, sendo uma combinação do representativo, do abstrato, do irreal e do inconsciente. Tento, aqui, hoje, fazer uma viagem ao surrealismo. Mas, o da imagem real combinada com as recordações.

(*) Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de sábado, 30 de abril de 2011, Caderno B, pág. 06.

2 comentários:

  1. Espetacular e tao atual seu comentario sobre os anos 1920, a epoca do surrealismo e todos os artistas considerados "loucos" de entao. Este tema tao em pauta que recentemente foi enfocado no novo filme de Woody Allen, "Midnight in Paris". Como de costume, Allen aborda a questao sempre presente do saudosismo que ha em todas as geracoes e que acompanha o ser humano desde os primordios. A velha frase: "bons tempos aqueles!", ou "nos eramos felizes e nao sabiamos". Esta é uma questao filosofica e humana, parte de nos sempre remonta ao passado e tem dificuldade de avaliar o presente como possivel "época aura". Talvez as futuras geracoes, quando olharem para traz, possam ver nosso inicio de milenio como espetacular ou fantastico. Agora, enquanto o vivemos, temos um dos olhos cortados com uma navalha...
    Lourdes Torgersen

    ResponderExcluir
  2. Sobre o mesmo tema, leia, neste blog, artigo de minha autoria, "Banho de Civilização", postado em 17 de fevereiro de 2011. O roteiro de Woody Allen para "Meia-Noite em Paris" é mera coincidência com o livro que pretendo lançar sobre o assunto.

    ResponderExcluir

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...