Vladimir Herzog |
domingo, 24 de julho de 2011
Fora de Órbita
Artigo Pessoal
Fora de Órbita
Clóvis Barbosa (*)
“Ah, Zeus, tu és um tirano! Não tens pena do homem. Primeiro tu o crias, e depois enche-lhe a vida de tormentos e desgraças!”. Foram essas as palavras com as quais Homero acusa Zeus, o soberano dos deuses e dos homens, pela amargura da vida de Odisseu. O que leva um grupo de servidores públicos relembrar um dos episódios que mais envergonha a humanidade: morte na fogueira! A simbologia retratada pela imagem de deputados e governador travestidos em bonecos de panos e queimados em praça pública sob os olhares frenéticos e odiosos, aos gritos lancinantes de satisfação, nos faz acreditar que continuamos vivendo numa baderna generalizada, onde o absurdo e o ridículo se entrelaçam numa fulgurante aliança e que desboca na incivilidade. E olhe que essa prática de queimar pessoas na fogueira foi abolida há mais de dois séculos, sendo considerada uma das páginas mais abjetas da história da humanidade. É sabido que a inquisição, responsável pela morte coletiva na fogueira, em penas aplicadas pelos tribunais públicos medievais, funcionava como corte de exceção, sempre castigando aqueles que não rezavam pela sua cartilha. É verdade, que a prática foi iniciada pelos reformistas, na idade média, que combatiam o status quo da igreja católica, que vivia cercado de uma pompa imperial, cujo poder político fazia-o esquecer-se das obrigações religiosas e, em contrapartida, vivia envolvida em intrigas da corte. Os reformistas consideravam a igreja dispensável e acreditavam que o Reino de Deus estava no coração de cada pessoa.
Embora os reformistas tenham criado os chamados “demônios da heresia”, cujos adeptos eram arrebanhados na Europa, foi na igreja católica romana que a inquisição teve o seu maior esplendor. Em 1022, a igreja criou o primeiro Tribunal Público Medieval em Orleans contra a Heresia e suas primeiras vítimas foram justamente os reformistas. O terror e a delação estavam na ordem do dia e as mortes na fogueira eram inevitáveis. Os suspeitos eram perseguidos e julgados e as penas impostas variavam desde a prisão temporária ou perpétua até a morte na fogueira, onde os condenados eram queimados vivos em praça pública, sob os olhares da multidão que vibravam com a cena dantesca. Esta forma de julgamento se alastrou por toda a Europa, exceção apenas da Inglaterra. Muitas figuras da ciência foram perseguidas, censuradas e até condenadas por defenderem teses e idéias contrárias à doutrina cristã. Dois casos bastante conhecidos foram o de Galileu Galilei e Giordano Bruno. O primeiro, astrônomo italiano que afirmava que o planeta Terra girava ao redor do Sol, escapou por pouco da fogueira; o segundo, também cientista italiano, não teve a mesma sorte, sendo julgado e condenado à morte por heresia ao defender idéias semelhantes, sendo queimado vivo na fogueira. Mulheres, homossexuais, judeus, muçulmanos, reformistas, cientistas, loucos e até quem tomava banho eram vítimas da inquisição. Era tido como bruxaria e passível de punição com a morte a prática de cura através de chás ou remédios feitos de ervas ou outras substâncias. Até sorrir era proibido.
Mas foi na Espanha que a inquisição foi mais marcante. Autorizada por um Bula do Papa Sisto IV, em 6 de fevereiro de 1481 seis pessoas foram queimadas vivas na estaca. Em Sevilha, em novembro desse mesmo ano, 288 pessoas foram queimadas ao mesmo tempo. Tomas de Torquemada foi a face mais aterrorizante da inquisição nesta época. Conta-nos Michael Baigent e Richard Leigh, na sua obra “A Inquisição”, Editora Imago, 331 páginas, que um certo abade Domenico, ao ser nomeado como inquisidor-geral de uma cidade francesa, determinou aos soldados que matassem todos os hereges de uma pequena província. No meio do caminho, o comandante da tropa perguntou a si mesmo como saber quem eram os hereges que deveriam ser assassinados. Destacou um soldado para retornar ao abade Domenico e o perguntasse como separar os praticantes de heresia dos não praticantes. A resposta foi taxativa: Matem-os todos. Deus saberá separá-los. E toda população da pequena província foi dizimada num fogaréu arrepiante. Os inquisidores tinham tanto poder e influência que rivalizavam com os próprios monarcas. O próprio abade Domenico, segundo os mesmos autores, pelos prestimosos serviços dedicados à “santa inquisição”, foi canonizado num dos processos mais rápidos da história da Igreja, transformando-se em santo. No Brasil, embora instalados no período colonial, os tribunais inquisitórios não tiveram muita força como na Europa, mas também fez as suas vítimas em alguns casos relacionados com heresia e perseguição a judeus que viviam no País.
A Igreja nega veementemente as estatísticas de morte praticadas pelos tribunais de inquisição. Recentemente, expôs pela primeira vez alguns documentos raros desse período, que se encontravam abertos apenas para estudiosos. A exposição chama-se Rari e preziosi. Documenti dell’età moderna e contemporanea dagli Archivi del Sant’Uffizio. Constam termos regulamentares, procedimentos de julgamento, e correções de desenhos das imagens. Nessa exposição, documento explicita que execuções "bárbaras", como queimar condenados, foram empregadas em pouquíssimos casos (na Espanha, por exemplo, apenas 1,8% dos hereges teriam sido queimados). Não é esta, contudo, a visão dos estudiosos da matéria. A literatura é riquíssima em mostrar as barbaridades ocorridas num período de 300 anos, onde a inquisição mandou e desmandou. Pena que grande parte dos documentos desses tribunais se perdeu e o número verdadeiro de todos esses assassinatos nunca será revelado. De qualquer modo, tratou-se de uma experiência sombria, horripilante e vergonhosa para a civilização e para todos nós que somos cristãos. Assim, recuso-me a aplaudir manifestações, mesmo simbólicas, como aquelas de queimar vivas na fogueira autoridades coroadas com o manto da escolha popular. Faço minha as palavras do jornalista Vladimir Herzog, brutalmente torturado e morto pela ditadura militar instalada no País em 1964: “Quando perdemos a capacidade de nos indignar com as atrocidades cometidas contra os outros, perdemos também a nossa condição de seres humanos”.
(**) Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 3 e 4 de julho de 2011, Caderno A, pág. 7.
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Estes atos da queima de bonecos msmo que simbolicamente,podemos chamar de educação,pôxa EDUCAÇÃO é o quê mesmo???????
ResponderExcluirDizem que nas festas juninas,tinha deputados que não podia ouvir falar em fogueiras kkkkkkkk,temiam passar próximo com medo de derepente ''um protesto'' kkkkkk.
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