Aracaju/Se,

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Elogio da Loucura

Artigo pessoal 

Elogio da Loucura
Clóvis Barbosa

Erasmo de Rotterdamm
Dizia Baudelaire que é preciso embriagar-se para não ser escravo martirizado do tempo, mas embriagar-se sem cessar! De vinho, de poesia ou de virtude, à nossa maneira. Ultimamente estou vivenciando essa embriaguez, não do vinho ou outra bebida qualquer, mas de literatura, filosofia, de reminiscências, e sobretudo, da sabedoria da natureza. Durante trinta e cinco anos dediquei-me com tenacidade à advocacia, profissão que garantia a sobrevivência minha e da família. A advocacia me proporcionou participar da Ordem dos Advogados do Brasil, onde tive a honra de ocupar os mais importantes cargos, como o de presidente da Seção de Sergipe e de conselheiro federal por diversas vezes. Também, nesse ínterim, ocupei importantes cargos públicos. O fardo do tempo, entretanto, não me permitiu acompanhar os acontecimentos à minha volta. Era preciso sobreviver, Deixei nas estantes os livros que não li, nos cinemas os filmes que não vi, nos palcos os shows, as peças teatrais e os grandes concertos que não assisti. A minha curiosidade só estava voltada para os livros técnicos, processos, audiências e aqui e ali dando uma pequena contribuição à luta contra a ditadura militar, pela redemocratização do país, pela cidadania e civilidade. Confesso: não tive o necessário talento para enriquecer com a profissão. Sempre fui romântico. O fato de ter estudado em escola pública fez com que eu me tornasse devedor da classe trabalhadora. Com o seu imposto o meu estudo era pago. Por isso, o meu escritório sempre esteve com as portas para os pobres e oprimidos. Pois bem, aos poucos estou retirando das estantes os livros empoeirados que não li, assistindo os filmes, as peças teatrais, concertos, shows que não assisti. Deparo-me com um pequeno livro que comprei há mais de quarenta anos, "Elogio da Loucura", de Erasmo Desidério, ou melhor falando, Erasmo de Rotterdamm, como era conhecido por ter nascido em Gouda, perto de Rotterdamm, mais ou menos em 1469.

Tomás Morus
O livro é dedicado ao seu amigo, o grande autor de Utopia, Tomás Morus, obra em que cria uma sociedade em que todos vivem em paz. Erasmo pede no final da dedicatória: "defenda com zelo esta loucura que agora lhe pertence". Quem fala na obra é a loucura, e como todos a consideram uma doença indesejável, ela propõe-se a fazer a sua própria apologia, ou como diz o provérbio, se ninguém te louva, farás bem em louvar-te tu mesmo. O livro é um libelo contra a filosofia, a fé e, sobretudo, ao comportamento humano. Erasmo é taxativo ao afirmar que a insanidade está presente na vida de todos nós. É uma obra que ninguém deveria deixar de ler. Meu Deus!, que coisa linda esta música de Caetano Veloso na voz de Maria Bethânia: Reconvexo. Eu sou a chuva que lança a areia do Saara / Sobre os automóveis de Roma / Eu sou a sereia que dança, a destemida Iara / Água e folha da Amazônia / Eu sou a sombra da voz da matriarca da Roma Negra / Você não me pega, você nem chega a me ver / Meu som te cega, careta, quem é você? / Que não sentiu o suingue de Henri Salvador / Que não seguiu o Olodum balançando o Pelô / E que não riu com a risada de Andy Warhol / Que não, que não, e nem disse que não / Eu sou o preto norte-americano forte /Com um brinco de ouro na orelha / Eu sou a flor da primeira música a mais velha / Mais nova espada e seu corte / Eu sou o cheiro dos livros desesperados, sou Gitá gogoya / Seu olho me olha, mas não me pode alcançar / Não tenho escolha, careta, vou descartar / Quem não rezou a novena de Dona Canô / Quem não seguiu o mendigo Joãozinho Beija-Flor / Quem não amou a elegância sutil de Bobô / Quem não é recôncavo e nem pode ser reconvexo. Volto a música e paro em "Gitá gogoia", aquela cujo "olho me olha, mas não me pode alcançar. Fiquei pasmo e telefono logo logo para meu irmão em Salvador e lhe pergunto se "Gitá gogoya" era aquela mulher que se vestia de roxo e vivia na rua Chile na porta da loja Sloper.

Mulher de roxo
Ele não soube responder. Tento falar com Rodrigo, em Santo Amaro, irmão de Caetano e nada. Falo com minha filha no Rio de Janeiro e peço para tentar localizar Caetano. Ele está viajando com Maria Gadu. Finalmente, recebo um e-mail de meu irmão me informando que Gitá Gogoya é uma outra personagem popular, porém da cidade de Santo Amaro, cidade onde nasceu Caetano Veloso. Incrível! Como pode uma música, de repente, me transportar para um passado distante e me colocar diante de uma mulher que me causava temor. O olho dela me olhava, mas eu não deixava o seu olho me alcançar, como dito na música. A Rua Chile, na época, década de sessenta do século passado, era o ponto chique da capital baiana, onde as melhores lojas estavam ali instaladas. Eu tinha muito medo daquela mulher de quem se contava estórias escabrosas. Diziam que ela era macumbeira do mal e torcedora do Vitória. Em todo jogo do Bahia e Vitória ela fazia um bozó gigantesco nas imediações da Fonte Nova para amarrar as pernas do jogador do Bahia. Diziam também que não podíamos deixá-la nos olhar nos olhos, pois teria ela o poder de nos transformar em sapo. Muita coisa era dita sobre a mulher de roxo, mas, na verdade, eram mitos. Ela foi uma lenda viva, apesar de misteriosa, que viveu em Salvador. As versões da sua loucura são várias: que fora uma moça educada e muito instruída e que sofrera, na sua juventude, uma desilusão amorosa; que ela teria perdido uma grande fortuna em dinheiro e imóveis; e que teria visto a mãe matar o pai, suicidando-se depois. Enfim, sua verdadeira história ainda é desconhecida. A verdade é que ela se transformou numa grande lenda viva e numa lembrança eterna para todos que viveram na capital baiana nos idos de 1960.

Caetano Veloso

Seu nome verdadeiro teria sido Florinda Santos. Cumpria religiosamente o horário comercial. Eram só as lojas abrirem as suas portas que ela chegava de mansinho, sempre descalça, de manta longa caracterizada por um veludo violáceo, um enorme crucifixo no peito e parava na loja Sloper, um magazine freqüentado pela alta sociedade soteropolitana. Certa vez, a Mulher de Roxo surpreendeu a todos ao desfilar pela Rua Chile, repetindo sempre o ritual diário, vestida de noiva, com buquê, véu e grinalda. Esta cena fez com que ela se tornasse mais conhecida e causasse impacto em todos. Uma grande onda de comoção tomou conta da população que a conhecia. Ela passou a ser mais respeitada, embora fizesse da sarjeta o seu ambiente de trabalho, sempre maquiada no rosto e nos lábios. Glauber Rocha, no filme O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, baseou-se nela para incluir cenas com uma moça de manta roxa.  Soube que ela morreu na década de 1990, já octogenária, mas a sua presença nas ruas de Salvador ainda hoje nos traz gratas recordações. É isso. Perquiro como Erasmo: seria suportável a vida, com suas desilusões e desventuras, se a loucura não suprisse as pessoas de um ímpeto vital irracional e incoerente? Não é mérito da loucura haver no mundo laços de amizade que nos liguem a seres perfeitamente imperfeitos e defeituosos? Aliás, a Bíblia já diz que  o número de loucos é infinito, ou que todo homem se torna louco por sua sabedoria,  ou que no coração dos sábios a tristeza; no coração dos loucos, a alegria. Finalmente, a loucura fala na voz de Erasmo: Digam de mim o que quiserem (pois não ignoro como a Loucura é difamada todos os dias, mesmo pelos que são os mais loucos), sou eu, no entanto, somente eu, por minhas influências divinas, que espalho a alegria sobre os deuses e sobre os homens. Como diria um provérbio grego, “Muitas vezes, até mesmo o louco raciocina bem”.
Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 4 e 5 de dezembro de 2011, Caderno A, página 7.

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