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domingo, 17 de outubro de 2010

Zélia Gattai

Grandes Personagens

ZÉLIA GATTAI
Por Natália Pesciotta


Zélia Gattai em várias fases de sua vida
02.071916-17.05.2008
Ela deu vida à memória

Por trás da esposa dedicada, braço direito de Jorge Amado, estava uma lutadora, defensora dos próprios ideais. Mais atrás – ela mesma surpreendeu-se com a descoberta, aos 63 anos –, havia a escritora. A habilidade com as letras levou Zélia a revelar todas as suas camadas e, de quebra, os contextos históricos em que viveu. Para escrever memórias, diria, só tendo memórias, oras.
 
Zelia e Jorge Amado
Primeiros anos do
casamento 
Seu Ernesto e dona Angelina discutiam em casa, que também abrigava uma oficina mecânica. São Paulo, 1916. Ele queria que a filha chamasse Pia. Tinha visto num romance. “Não seria melhor Bacia ou Balde?”, ironizava a mulher. Acabou prevalecendo a opinião de Maria Negra, a empregada da casa, que sugeriu Zélia. A caçula da família nasceu em 2 de julho, dia da principal comemoração da Bahia. Mais tarde adotaria o estado como lar e dele receberia as ordens do Mérito, em 1995, e o título de Cidadã Baiana, 10 anos depois. Quando era pequena, cantava de cor o hino da Internacional Comunista e vendia jornais anarquistas nos eventos político-operários que frequentava com os pais. Só que, durante a festa da paróquia do bairro, em lugar de panfletos, vendia rifas para a igreja. Estes e vários outros causos a menina juntou, já senhora, no livro de estréia: Anarquistas Graças a Deus (1979).

Só tem memória quem viveu

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Zélia Gattai
A fina ironia do livro deu a Zélia o Prêmio Paulista de Revelação Literária. Teve 200 mil cópias vendidas em menos de 20 anos e rendeu uma minissérie em 1984. A partir daí, toda a vivência foi, aos poucos, se cristalizando em letras. Foram 10 livros de memória no total, mesclas de casos pessoais com a realidade do País, sem deixar de lado boas doses de humor. Criou ainda três livros infantis e um romance. A afinidade com a literatura vinha da infância. Zélia e as irmãs costumavam explorar o armário proibido da mãe, onde se guardavam preciosidades: O Inferno de Dante, teorias anarquistas de Bakunin e Koptkin. Lá embaixo, o preferido de todas, Os Miseráveis, de Victor Hugo. Durante mais de meio século ao lado de Jorge Amado, datilografando e revisando seus originais, a intimidade com os livros só se fortaleceu. Por que estreou apenas aos 63 anos? “É que quem escreve memórias precisa ter as memórias.” E reforçava: “É preciso ter atingido um certo nível, uma certa maturidade para entender as pessoas.”

Sobre florestas e castelos

Aos 20 anos, Zélia casara com o militante comunista Aldo Veiga e dera à luz Luís Carlos. Depois que o pai foi preso pelo governo Vargas, a participação da moça no movimento de esquerda se intensificou. Foi quando conheceu Jorge Amado, durante o 1° Congresso de Escritores, organizado pelo Partido Comunista Brasileiro. O humorista Aparício Torelly, o Barão de Itararé, os apresentou. “Ao pousar pela primeira vez os olhos em você, meu coração disparou”, diria Jorge a ela mais tarde. Podia ser mais um romance do baiano, desses que Zélia admirava desde os 17 anos, mas a história era real, e quem contou foi ela, em Um Chapéu para Viagem (1982). Com Jorge eleito para a Câmara Federal, lá se foi o casal para o Rio de Janeiro, onde nasceu João Jorge. Um ano depois, com o PCB ilegal, partiram para o exílio. Em Paris, Zélia estudou Civilização e Língua Francesa na Sorbonne. Depois de fazer amizade com os Pablos Neruda e Picasso, Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre, o casal precisou partir novamente, expulso por ser comunista.

O destino foi uma comunidade de escritores na Tchecoslováquia, experiência parecida com a dos antepassados Gattai. O avô de Zélia atravessara o oceano com os filhos pequenos, vindos da Itália, para viver numa comunidade anarquista no Sul do Brasil, a Colônia Cecília. Uma grande diferença é que os anarquistas italianos foram parar no meio da floresta, e os escritores comunistas num lindo castelo abandonado pela realeza. Nele nasceu a caçula Paloma, e as histórias ali vividas foram todas para O Castelo de Vidro (1988). Nessa época, Zélia tomou gosto pela fotografia. Guardou os registros de Jorge Amado capturados pela sua Rolleiflex para Reportagem Incompleta (1987).

“Chego a ver as cores”


Zélia e Jorge Amado

Após passagens pela China, Mongólia e Rio de Janeiro, em 1963 finalmente o casal fixou-se na Bahia. As visitas de muitos amigos ilustres, sob as mangueiras do jardim, estão em A Casa do Rio Vermelho (1999). Só então, estimulada pelo marido, Zélia tomou impulso para escrever. Sempre sem consultar anotação alguma, contando apenas com as lembranças: “As coisas que vivi, que eu conto, não precisavam ter sido anotadas, porque me marcaram profundamente. E quando começo a escrever, me desligo do presente e volto a dar gargalhadas. Chego a ver as cores, os detalhes”. Por isso, depois da morte de Jorge, Zélia reviveu o romance dos dois, escrevendo sobre o amado. Faleceu sete anos depois, em 17 de maio de 2008. Ficou oficialmente imortalizada pela Academia Brasileira de Letras, onde ocupou a cadeira que foi do companheiro. Na posse, em 2001, disse que trazia no sangue a qualidade de contadora de histórias. Mas revelou um segredo: “Muito cedo, comecei a entender que uma leitura ou uma história só prestam, empolgam e nos fazem sonhar quando transmitidas com prazer e emoção”.

SAIBA MAIS

- Memorial do Amor (Record, 2004), o último livro publicado por Zélia Gattai, aos 88 anos.
- Assista a um vídeo com fotos de Zélia ao longo da vida e leia este artigo no site www.almanaquebrasil.com.br, de onde esta matéria foi reproduzida.
- Natália Pesciotta é jornalista.

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