Aracaju/Se,

sábado, 20 de novembro de 2010

Quem será o responsável por tudo, diante de todos?

Artigo Pessoal

Quem será o responsável por tudo, diante de todos? 

Clóvis Barbosa*
Existem, no Direito, dois setores distintos. Há aquele que congrega o erro e o acerto. Há, também, o que congrega o justo e o injusto. Daí, uma decisão até poder estar certa, mas ser injusta; ou estar errada, mas ser justa. E isso não é complicado de entender. O hipotético erro poderá estar ou no plano formal ou no plano do conteúdo. Desse modo, quando um juiz (legalista em sua essência) adota o acerto como princípio básico da formatação das decisões, é melhor que ele acerte no conteúdo e erre na forma, se não for possível acertar nas duas coisas ao mesmo tempo. Interessante é que o próprio ordenamento assimila tal raciocínio quando acata, por exemplo, o que chamamos de fungibilidade. Fungibilidade é uma espécie de adaptação automática, cuja idéia advém da finalidade primordial do Direito, que é propagar justiça. Dessa maneira, se, numa determinada ação, o autor pede uma medida cautelar, quando o certo seria pedir uma antecipação de tutela [os termos jurídicos são necessários], o juiz deverá antecipar a tutela, mesmo que, formalmente, o pedido não tenha sido certo. Por quê? Porque não é justo que alguém seja prejudicado tão-somente em razão de um pequeno deslize, de uma mera filigrana. A decisão de um julgador não pode gravitar em torno de um epicentro vazio, seu juízo não pode estar concentrado naquilo que Gilberto Vila-Nova (procurador de justiça do Estado de Sergipe, já falecido) chamava de perfumaria jurídica. Nisso, o caso do Tribunal de Contas de Sergipe é emblemático: um conselheiro poderia ser aposentado por força de decisão colegiada da qual tenham participado auditores? Ora, seria essa, realmente, a indagação mais importante? Importante mesmo não seria saber se há motivos para que aquele conselheiro seja aposentado? Importante mesmo não seria saber se a presença daquele conselheiro no Tribunal de Contas não afetaria a imagem da corte perante a sociedade?

Goffredo Telles Júnior

Immanuel Kant

Para o bem ou para o mal, obviamente, a consciência que deve reger a trilha a ser seguida pelas decisões é a do juiz. Os aplausos pelos acertos serão a ele outorgados, assim como as cobranças por eventuais equívocos. A alusão, aqui, é a cobranças morais. Por exemplo, o professor Tércio Sampaio fala de uma coisa chamada imunização das normas jurídicas. Sentenças são normas. Assim, como as sentenças estarão imunizadas? Se elas estiverem respaldadas em norma superior que as justifique. O leitor deve atentar para o uso do vocábulo “norma”, ao invés de “lei”. A norma é a lei que está de acordo com a “normalidade”, com o sentimento de justiça que a sociedade naturalmente possui, de acordo com o professor Goffredo Telles Júnior. Uma lei injusta, conseqüentemente, não é “normal”. Por conseguinte, ela não é uma “norma”. Uma decisão judicial injusta também não é “normal”. Logo, ela não se reveste com a autoridade de uma “norma”. Atentemos para o caso do julgamento de Nuremberg. Com efeito, os nazistas praticaram atrocidades contra a humanidade. Mas tudo o que eles fizeram estava respaldado num alicerce constitucional formalmente perfeito (numa visão míope da doutrina kelseniana). Não havia uma constituição que alicerçava as ações de Hitler? Mas será que essa constituição estava imunizada pela norma fundamental? Por aquilo que Kant denomina imperativo categórico? Kant ensina que devemos “agir de tal maneira, que o fundamento de nossa ação se transforme em princípio de uma legislação universal”. Assim, perguntemos: os campos de concentração achavam eco no princípio de uma legislação universal? Perguntemos mais: já que não havia legislação que previsse punição para a ação dos nazistas, eles deveriam ficar impunes, apenas por questões formais? Afinal, como condenar alguém, sem lei anterior que definisse a ação desse sujeito como crime? De qualquer modo, seria “normal”, para a humanidade, deixar os nazistas sem punição, por conta de um respeito “anormal” à formalidade?

Dostoievsky

Comte-Sponville

No caso do TCE sergipano, a decisão que suspendeu a aposentadoria de um conselheiro (por questões formais) está imunizada? Ela atendeu ao postulado do imperativo categórico kantiano? É preciso que as pessoas saibam que a lei não é o fim do direito. A lei é apenas o início de um raciocínio jurídico. O fim do direito é a justiça. E a justiça só é atingida quando se faz valer a norma, ou seja, a determinação verbalizada conforme a “normalidade”. Certa vez, o escritor russo Dostoievsky afirmou que “todos somos responsáveis por tudo, diante de todos”. Partindo dessa premissa, o filósofo francês Comte-Sponville distinguiu valor de verdade. Nesse diapasão, a decisão que suspendeu a aposentadoria do referido conselheiro até conteria uma verdade (auditores não poderiam julgar conselheiros). Mas será que o resultado dessa decisão conteria um valor? E, considerando que valor é justiça, seria justo manter como conselheiro alguém que, à época de sua escolha pela Assembléia Legislativa para ocupar tal cargo, estava sendo investigado pela polícia federal por corrupção? Alguém contra quem havia uma sentença condenatória em sede de ação de improbidade? Alguém contra quem (por força daquela investigação que já existia à época de sua escolha) foi decretada prisão preventiva por uma ministra do STJ? Alguém, cuja voz, amplamente veiculada pela imprensa (porque captada em interceptações autorizadas pelo judiciário), está associada à prática de ações que não se coadunam com a função de conselheiro? Isso é “normal”? E quem (no fim) será o responsável por tudo isso, diante de todos?


• Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo, segunda e terça-feira, 6 a 8 de setembro de 2009, Caderno B, pág. 07.




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