Aracaju/Se,

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Daniel na Cova dos Leões

As gêmeas siamesas,
a Lei de Imprensa
E Daniel na cova dos leões

A imprensa deve ser livre; e, às vezes, dissoluta. A liberdade de imprensa, contudo, passa por um quadro de sedimentação sociológica. Quanto mais evoluída uma civilização, mais livre sua imprensa. Daí, poder chegar-se à conclusão de que ditaduras refletem involuções. No mais, ditadores morrem afogados no próprio vômito. A inflexibilidade da ditadura é causa principal de sua ruína. Quando não agüenta a tensão daqueles que querem impor um regime democrático, ela se despedaça. Ditadores, no entanto, são bons em matemática. Esse é o mundo no qual eles, melhor do que ninguém, sabem dar as cartas: o dos números. Se você der um troco errado para um democrata, ele verá no erro uma espécie de contribuição com a melhor distribuição de renda. Mas se você der um troco errado para um ditador, ele pensará ou que você é burro, ou que quer intervir no patrimônio dele, algo passível de pena capital.

O ditador, no fundo, é um frágil com bases narcísicas estilhaçadas. Os ditadores reprimem a imprensa porque a temem. Covardia. Homens corajosos não reprimem os inimigos. Homens corajosos enfrentam os inimigos. Homens corajosos e fortes enfrentam e derrotam. Por isso, não abro mão do que disse. A imprensa, além de livre, deve ser dissoluta. Nem sempre. Só às vezes. Mas que deve, deve. Aprendi com H. L. Mencken que “imoralidade é a moralidade daqueles que estão se divertindo mais do que nós”. E qual o sentido da imprensa se ela não for ácida? De uma acidez tal que seja capaz de fazer com que leitor não consiga controlar o riso? Imbecis costumam dizer que jornalistas são pessimistas. Bobagem. Paulo Francis estava certo quando disse que “todo otimista é um mal-informado”. Dario, comandante militar de Ciro, era otimista. E, por causa disso, Daniel quase se deu mal.

Está tudo ali, no livro que leva o nome do profeta. Capítulo 6. Dario, objetivando promover um processo de descentralização administrativa, nomeou 120 governadores, acima dos quais havia três ministros. Dentre os ministros, o mais prestigiado era Daniel. Com inveja, os demais induziram o monarca a assinar uma lei que condenava à cova dos leões todo aquele que, durante 30 dias, adorasse outra entidade, que não fosse o próprio Dario. O rei, crendo que estava fazendo algo bom para sua popularidade, assinou o ato irrevogável. Daniel, todavia, honrava mais o seu deus do que o rei. Desconsiderando a tal lei, por conseguinte, chegou em casa e foi orar. Os invejosos o denunciaram a Dario que, deprimido, não pôde fazer nada, além de determinar que Daniel fosse jogado na cova dos leões. Sucede que Daniel foi salvo por intervenção divina. E o rei, como vingança, condenou à morte aqueles que invejavam Daniel.

É, de fato, a boa-vontade algumas vezes pode resultar em tragédias. A intenção do rei era nobre: enaltecer seu nome entre os governados. Nada de formidável. Mas, não fosse a fé de Daniel, o resultado teria sido o inverso: a desgraça de Dario, que perderia seu mais capaz ministro. Isso prova que a majestade também pode não captar todas as conseqüências de uma decisão por ela prolatada. Foi o que se deu, agora, com recente liminar concedida em sede de argüição de descumprimento de preceito fundamental que o Partido Democrático Trabalhista - PDT ajuizou no Supremo Tribunal Federal – STF em face da lei de imprensa. Com essa ação, o PDT pretende fazer com que o supremo declare que a Lei de Imprensa, editada no período ditatorial, não foi recepcionada pela constituição de 1988. Tudo bem. O código penal também veio à luz num período não muito democrático. Menos ditatorial do que aquele em que nasceu a lei de imprensa. Mas, nem por isso, libertário.

Ainda assim, os generais da ditadura deram aos jornalistas um tratamento melhor. Como foi dito acima, ditadores entendem mais de matemática do que democratas. Um exemplo vai elucidar a questão: o jornalista que calunia um servidor público através de um veículo de comunicação, pelo artigo 20 da Lei de Imprensa, será sancionado com uma pena que irá de seis meses a três anos de detenção, sendo que poderá chegar a quatro anos por ter sido o crime praticado contra servidor. Pouco importa. Segundo o artigo 41 da Lei de Imprensa, esse crime estará prescrito em dois anos e pronto. Porém, se o STF decidir que a Lei de Imprensa não foi recepcionada pela Constituição Federal, a conduta do jornalista irá para o art. 138 do código penal (calúnia): detenção de seis meses a dois anos, podendo o máximo atingir dois anos e oito meses, por ter sido o crime praticado contra servidor. Prescrição? Oito anos! É o que diz o artigo 109, inciso IV, do código penal.

Por enquanto, a liminar apenas suspendeu os processos ajuizados contra jornalistas que, em tese, praticaram ilícitos de imprensa. No entanto, se o pleno do Supremo Tribunal federal a corroborar e julgar que a Lei de Imprensa não é compatível com a ordem constitucional vigente, preparem-se os jornalistas. Com a Lei de Imprensa, o menos hábil dos advogados conduziria qualquer processo para a prescrição. Todo processo desse tipo dura muito mais do que dois anos. Com a nova realidade, isso será praticamente impossível. Oito anos são oito anos. Isso é matemática. As razões que inspiraram a decisão liminar foram democráticas, doutas, libertárias. Mas erraram no cálculo. Foi um tiro na mão, já que jornalista não escreve com o pé. Quando os jornalistas entenderem a matemática do problema, vingará novamente o gênio de Paulo Francis: “o mal da imprensa é que ela não ousa mais desagradar o leitor”.

Desagradar: eis o papel da imprensa livre. Mas o receio causado pelo hiato decorrente de uma eventual declaração de não recepção da Lei de Imprensa, sem um anteparo que oferte segurança aos jornalistas, roubará deles a energia. Esse, entretanto, não é o único impasse. Há outros, a exemplo das vantagens que a Lei de Imprensa outorga com os institutos da decadência, da retratação, etc. Aqui, iniciei o debate, que deverá protair-se no tempo, para abordar, inclusive, as conseqüências da decisão no cível. Esse intróito foi mais metafórico e ilustrativo, procurando atender a uma finalidade didática. E, por falar em metáfora, foi dito, na liminar do PDT, que democracia e imprensa são “irmãs siamesas”. Intrigante. A sociedade mineira de pediatria afirma que a cada 25 mil partos, um é de gêmeas siamesas. Destas, 40% morrem antes do nascimento. Das que nascem, 35% não sobrevivem: mais de 60% de mortalidade. Tomara que, nessa história, não morra o jornalismo dissoluto. Aquele que faz a gente se divertir.

* Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segun-da-feira, 2 e 3 de março de 2008, Caderno B. pág. 7.

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