Aracaju/Se,

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Conversa de Comadres à Espera da Morte

A Liberdade de Profissão, a Inelegibilidade
dos Jornalistas e a Conversa de Comadres à Espera da Morte



Duas razões fazem com que de uma interpretação não advenham resultados razoáveis. Em primeiro lugar, a má-fé do intérprete; em segundo, a sua insipiência. Quando a interpretação chega ao local errado propositadamente, vê-se que o intérprete é um fanfarrão. Ao invés de valer-se de elementos dialéticos, ele procura asfixiar o auditório ao qual se reporta com a liturgia do sofisma. Por outro lado, quando o intérprete não tem sucesso porque sua visão é apopléctica, deve-se outorgar-lhe o beneplácito da tolerância, explicando-lhe o porquê do equívoco na leitura que fez. Ambos os casos são testemunhados em face das várias interpretações que, aqui e acolá, parlamentares fazem da constituição federal: ora, alguns se fazem de beócios para ludibriar os que são mais beócios do que eles; ora, não alcançam mesmo o real sentido da norma e afundam num areal de esquisitices interpretativas.
         
E por falar em interpretação, em novembro do ano passado, a senadora Serys Slhessarenko apresentou um projeto de lei complementar, com o propósito de acrescentar mais duas letras ao inciso I do art. 1º da LC 64/90, criando, de um lado, um novo prazo de desincompatibilização para os profissionais de imprensa que desejem galgar um mandato eletivo e, de outro, especificando uma nova situação de inelegibilidade, consubstanciada na situação daquele que, tendo sido eleito, continuar desenvolvendo a profissão de jornalista, radialista, etc. Sucede que Serys Slhessarenko não agiu com má-fé. Seu objetivo foi nobre. Só para que se tenha uma idéia da galhardia dessa senadora, ela também apresentou projeto de lei, reforçando a proibição de que homens e mulheres dividam o mesmo compartimento prisional, ali onde cometam crimes e sejam encarcerados. Algo tautológico. Mas feito com boa-fé.

Assim, só resta a hipótese da leitura errada que a ilustre senadora fez da constituição federal. E a leitura está errada mesmo. Para demonstrar tal ponto-de-vista não será necessário um esforço hercúleo. Lançar-se-á mão apenas e tão somente de dialética pura e simples. Em primeiro lugar, atente-se para o seguinte: a constituição federal foi arquitetada de tal forma que sua divisão se dá em nove títulos. O título I cuida dos princípios fundamentais; já o título II, dos direitos e garantias fundamentais. Dentro do título I, mais precisamente no art. 1º, IV e V, a carta afirma que são fundamentos da república os valores sociais do trabalho e o pluralismo político. Ou seja, a constituição assegura tanto o direito de trabalhar, como o de que pessoas das mais diversificadas formações alcancem os cargos políticos, seja no executivo ou no legislativo: advogados, engenheiros, jornalistas, médicos, policiais, radialistas, etc.

Pluralismo político significa que o stablishement parlamentar deve ser preenchido por pessoas oriundas de todos os estamentos sociais. O conceito de estamento é sociológico. Ele é mais fechado do que uma classe, mas mais aberto do que uma casta. Daí, por exemplo, analfabetos serem inelegíveis. Eles integram uma classe, mas não o estamento exigido pela CF. E isso tem um sentido. Afinal de contas, como um analfabeto vai integrar o debate legislativo, se ele não tem controle sobre sua matéria prima: a linguagem escrita? Todavia, a partir do momento em que se quer proscrever que um profissional de imprensa integre o stablishement, abandona-se a idéia de estamento, passando-se ao critério eugênico de casta. Numa palavra, jornalistas e radialistas não são bem vindos ao parlamento. Isso colide com a performance pluralista que a constituição quer atribuir à ossatura republicana deste país.

Ademais, o título II da CF, que dá corpo aos direitos fundamentais, pretexta, no art. 5°, XIII, que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Logo, é inconstitucional um projeto de lei que restringe o acesso aos cargos públicos, proibindo que eles sejam almejados por profissionais de imprensa, os quais teriam que abandonar sua profissão natural para poder contribuir com a política nacional, reforçando a idéia do pluralismo, cuja acepção é ontologicamente ideológica, ou seja, quanto mais perspectivas houver no parlamento, melhor para o povo. Por que, então, privar o titular do poder de ter, como representantes, indivíduos que militam na seara da liberdade de imprensa? Isso, a rigor, constitui um óbice à liberdade de profissão. Algo semelhante seria exigir que advogados largassem a beca para poder chegar ao legislativo.
 
O argumento de Serys Slhessarenko, no entanto, é sedutor. Segundo ela, os profissionais de imprensa teriam um plus em relação aos demais candidatos, já que seus programas lhes permitiriam fazer constante propaganda eleitoral, tornando os pleitos desiguais. Com efeito, a senadora precisa entender que há estamentos mais fortes do que outros. A imprensa, de fato, é forte. Não foi à toa que, em 1997, a cinematografia a ela referiu-se como o “quarto poder”, valendo-se do inquestionável talento de Dustin Hoffman, no papel de um jornalista inescrupuloso que faz uma cobertura aética para não perder o emprego na emissora para a qual presta serviços. Mas esse foi um caso isolado. Em verdade, inelegibilidade só pode ser tratada em dois campos. Ou na constituição, ou através de lei complementar. Mas não é só a forma que vai garantir o êxito da implantação de um novo caso de inelegibilidade.

É que a constituição, no art. 14, § 9°, diz que lei complementar poderá trazer outros casos de inelegibilidade. Porém, esses “outros” casos deverão, obrigatoriamente, estar afeitos a situações de improbidade, vida pregressa imoral do candidato e anormalidade das eleições, decorrente de influência do poder econômico ou abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta. Pois bem, além do fato de que influência do poder econômico ou abuso no exercício de função, cargo ou emprego, não podem ser presumidos, devendo ser constatados em concreto, essa influência e esse abuso precisam dar-se no âmbito da administração direta (união, estados, distrito federal e municípios) ou indireta (autarquias, fundações autárquicas, empresas públicas e sociedades de economia mista). Logo, a lei complementar não poderá abarcar abusos no âmbito de concessionárias ou permissionárias.
      
É o caso das emissoras de rádio e de televisão. Elas não integram a administração direta. Tampouco, integram a indireta. Portanto, uma lei complementar que traga tal situação de inelegibilidade será materialmente inconstitucional. Certamente, a senadora não atentou para esse espectro. Certamente, ela também não atentou para o que já foi decidido pelo superior tribunal de justiça, quando a corte arrematou que “o direito abomina o excesso, seu uso desviado das finalidades” (recurso especial 330.677/RS). O direito também concretiza a sua autopoiese com base no princípio da razoabilidade. Além do mais, a interpretação do art. 14, §9°, da CF, não pode ser ampliada para capturar concessionárias e permissionárias, pois é princípio geral do direito que “interpretam-se as proibições estritissimamente” (exceptiones sunt strictissimoe interpretationes). Ir além disso, daria cobro a algo desarrazoado.

Esse episódio lembra um conto de Guido Fidelis, “conversa de comadres à espera da morte”, onde se narra a agonia de dona Encarnação. Diante do quadro, umas doze velhinhas se reúnem na casa da comadre, para rezar, até que dona Terezinha diz dominar uma técnica, aprendida com sua mãe, para acelerar a chegada da morte. Seria um ato de caridade: dona Encarnação precisa descansar. Coisa nenhuma! Como a moribunda é só, as comadres ficarão com seus pertences. Por detrás de um ato de boa-fé, escondia-se o desejo de “ocupar” a propriedade da futura defunta. Querer a morte política de jornalistas é a mesma coisa. Algo aparentemente feito para “proteger” a democracia, mas que, afinal, protege apenas o interesse dos que “ocuparão” o espaço deixado pelos novos inelegíveis. Democracia é isso. Como diz Mencken, ela “é a arte e a ciência de administrar um circo a partir da jaula dos macacos”.



* Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 20 e 21 de janeiro de 2008, Caderno B. p. 10.


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