Artigo Pessoal
Quo Vadis?
Clóvis Barbosa*
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Barack Obama |
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Colin Powell |
Estou particularmente seduzido pelo insight do governo pluripartidário. A lição não é nova. Barack Obama, todavia, rejuvenesceu a idéia. Reconheçamos que a iniciativa não partiu dele, mas de Colin Powell, que identificou no democrata o perfil ideal para o futuro presidente ianque. Nada demais, não fosse o fato de Powell ter sua ideologia tracejada segundo o cânon do republicanismo. Isso sem mencionar que ele ocupou o destacado cargo de secretário de estado numa administração pré-cambriana como a de George Bush. Numa palavra, Obama e Powell, pelo menos até um dia desses, eram adversários. Agora, contudo, o presidenciável já declarou que deseja contar com o general da reserva no seu governo. Mas por quê? Elementar. Porque, como ensinava o ex-presidente Abraham Lincoln, a melhor maneira de aniquilar um inimigo é transformá-lo num amigo. A história está repleta de lições nesse sentido.
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Churchill |
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John Colville |
22 de junho de 1941. Londres. Dia em que Churchill manifestou irrestrita solidariedade aos soviéticos, cujo país acabara de ser invadido por Hitler. John Colville, secretário do premiê, entretanto, assombrado com a teórica incoerência do chefe, consistente em aliar-se com os comunistas que, no passado, quis ver esganados, censurou Churchill antes de ele começar o pronunciamento pelo rádio. Diante disso, o experiente primeiro-ministro, na altura dos seus 66 anos, não poderia perder a oportunidade de dar uma lição no assessor. “Meu filho, se Hitler invadisse o inferno, eu, no mínimo, faria uma referência favorável ao diabo”. Qual a lógica de Churchill? Compor com um antigo inimigo (Stalin) para assegurar a governabilidade mundial. Ambos tinham encontrado um inimigo externo comum, que afetava interesses também comuns. Daí, a inevitabilidade da coalizão, até como garantia de manutenção da paz pós-guerra.
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Josef Stalin |
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Adolf Hitler |
A chave do poder, em situações desse naipe, está consubstanciada na permanente vigília que o inimigo impõe. Mas não só. O matiz de governabilidade que busca formar um correligionário no inimigo também parte da premissa segundo a qual este apresentará mais produtividade do que aquela que seria contabilizada pelo amigo. Por quê? Porque o amigo supõe que a contrapartida que ele tem para oferecer ao governante estimado é, única e exclusivamente, a amizade. Acontece que, em política, as relações são de complexidade subliminar. Seu feixe enrijece-se na medida em que elas se aperfeiçoam, encontrando fundamento na capacidade e na competência. Malgrado a etnia os aproximasse, a aliança entre ingleses e americanos foi posterior àquela que se testemunhou entre ingleses e russos, inimigos de antanho. Naquele momento, era útil gerir a guerra com os soviéticos, que demonstrariam gratidão no futuro.
Eis a acepção da coisa. Um inimigo agraciado por sua capacidade de produzir e por sua competência em formular jamais quererá sequer passar a impressão de que perdeu tais atributos. O amigo, no entanto, que é agraciado sem que algum critério técnico acompanhe uma nomeação para um cargo qualquer, fatalmente se tornará um ingrato. Sua psique não enxerga a obrigação de provar constante fidelidade. Para ele, a fidelidade sempre esteve provada. Essa proposição, porém, não encontra respaldo antropológico. Fidelidade é algo que se prova dia-a-dia. Um inimigo congraçado por ser capaz e competente transpira serventia e indispensabilidade. Ele não jogará fora a oportunidade de manter estendido o rol de asseclas. Como preconizam Robert Greene e Joost Elffers, “guarde os amigos para a amizade, mas para o trabalho prefira os capazes e competentes”. No fundo, congraçar tão-somente amigos é desgraçar-se.
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Henryk Sienkiewicz |
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Cristo na
Via Appia |
Prêmio Nobel de literatura em 1905, o escritor polonês Henryk Sienkiewicz (autor do festejado romance quo vadis?) atesta o quanto é temerário entregar postos de relevante vulto a amigos, simplesmente porque eles são amigos. Quer uma evidência de tal ponto-de-vista? Imagine o leitor que está na Roma governada por Nero. O único pilar vivo do cristianismo é Pedro, a quem Cristo chamou de pedra angular da sua igreja. A matança de cristãos no obelisco do circo de Nero leva o psicopata ao êxtase. Pedro, de personalidade sempre oscilante (já havia negado o mestre três vezes no passado), resolve fugir da cidade. Já na via appia, tem uma visão. Cristo, carregando sua cruz, caminha em direção a Roma. Assim, Pedro, aturdido, indaga o rabi: “quo vadis, domine?” (aonde vais, senhor?). Jesus, de acordo com sermão de Santo Ambrósio, responde: “venio iterum crucifigi” (venho ser novamente crucificado).
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Voltaire |
A rigor, Cristo quis dizer algo do tipo: “já que não pude contar com o único amigo que tinha para apascentar meu rebanho, vim eu mesmo”. Envergonhado, Pedro voltou. Diz a patrística que foi crucificado de cabeça para baixo. Por outro lado, Paulo (talvez o maior inimigo que o cristianismo já teve) após converter-se nunca temeu a morte e jamais fugiu dela. Por isso, foi chamado apóstolo das nações, escolhido a dedo por Jesus para difundir seus ensinamentos. Um inimigo que se tornou o maior de todos os aliados, porquanto fosse capaz e competente. São Pedro que me perdoe, mas não abrirei mão da tese. Quando nos depararmos com um oponente talentoso, devemos perguntar-lhe: “quo vadis?” e trazê-lo para o nosso lado. Coligar-se com quem digladiávamos é usar o aço da espada na armadura. Por conseguinte, faço minhas as palavras de Voltaire: “Deus me proteja dos meus amigos. Dos inimigos, cuido eu”.
• Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 26 e 27 de outubro de 2008, Caderno B, p. 6.
O senhor sabe de quem é o pintor do Cristo carregando a cruz?
ResponderExcluirObrigada
O quadro é de um pintor italiano conhecido como Annibale Carraci (Fratello di Agostino e cugino di Ludovico, nascido em Bologna (1560) e falecido em Roma (1609).
ResponderExcluirO quadro está exposto no National Gallery, Londres e foi pintado entre 1601 e 1602.
o nome do quadro é Domine, Quo Vadis.
Clóvis Barbosa