Aracaju/Se,

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Quo Vadis?

Artigo Pessoal

Quo Vadis?
Clóvis Barbosa*

Barack Obama
Colin Powell
Estou particularmente seduzido pelo insight do governo pluripartidário. A lição não é nova. Barack Obama, todavia, rejuvenesceu a idéia. Reconheçamos que a iniciativa não partiu dele, mas de Colin Powell, que identificou no democrata o perfil ideal para o futuro presidente ianque. Nada demais, não fosse o fato de Powell ter sua ideologia tracejada segundo o cânon do republicanismo. Isso sem mencionar que ele ocupou o destacado cargo de secretário de estado numa administração pré-cambriana como a de George Bush. Numa palavra, Obama e Powell, pelo menos até um dia desses, eram adversários. Agora, contudo, o presidenciável já declarou que deseja contar com o general da reserva no seu governo. Mas por quê? Elementar. Porque, como ensinava o ex-presidente Abraham Lincoln, a melhor maneira de aniquilar um inimigo é transformá-lo num amigo. A história está repleta de lições nesse sentido.

Churchill
John Colville
22 de junho de 1941. Londres. Dia em que Churchill manifestou irrestrita solidariedade aos soviéticos, cujo país acabara de ser invadido por Hitler. John Colville, secretário do premiê, entretanto, assombrado com a teórica incoerência do chefe, consistente em aliar-se com os comunistas que, no passado, quis ver esganados, censurou Churchill antes de ele começar o pronunciamento pelo rádio. Diante disso, o experiente primeiro-ministro, na altura dos seus 66 anos, não poderia perder a oportunidade de dar uma lição no assessor. “Meu filho, se Hitler invadisse o inferno, eu, no mínimo, faria uma referência favorável ao diabo”. Qual a lógica de Churchill? Compor com um antigo inimigo (Stalin) para assegurar a governabilidade mundial. Ambos tinham encontrado um inimigo externo comum, que afetava interesses também comuns. Daí, a inevitabilidade da coalizão, até como garantia de manutenção da paz pós-guerra.

Josef Stalin
Adolf Hitler
A chave do poder, em situações desse naipe, está consubstanciada na permanente vigília que o inimigo impõe. Mas não só. O matiz de governabilidade que busca formar um correligionário no inimigo também parte da premissa segundo a qual este apresentará mais produtividade do que aquela que seria contabilizada pelo amigo. Por quê? Porque o amigo supõe que a contrapartida que ele tem para oferecer ao governante estimado é, única e exclusivamente, a amizade. Acontece que, em política, as relações são de complexidade subliminar. Seu feixe enrijece-se na medida em que elas se aperfeiçoam, encontrando fundamento na capacidade e na competência. Malgrado a etnia os aproximasse, a aliança entre ingleses e americanos foi posterior àquela que se testemunhou entre ingleses e russos, inimigos de antanho. Naquele momento, era útil gerir a guerra com os soviéticos, que demonstrariam gratidão no futuro.

Eis a acepção da coisa. Um inimigo agraciado por sua capacidade de produzir e por sua competência em formular jamais quererá sequer passar a impressão de que perdeu tais atributos. O amigo, no entanto, que é agraciado sem que algum critério técnico acompanhe uma nomeação para um cargo qualquer, fatalmente se tornará um ingrato. Sua psique não enxerga a obrigação de provar constante fidelidade. Para ele, a fidelidade sempre esteve provada. Essa proposição, porém, não encontra respaldo antropológico. Fidelidade é algo que se prova dia-a-dia. Um inimigo congraçado por ser capaz e competente transpira serventia e indispensabilidade. Ele não jogará fora a oportunidade de manter estendido o rol de asseclas. Como preconizam Robert Greene e Joost Elffers, “guarde os amigos para a amizade, mas para o trabalho prefira os capazes e competentes”. No fundo, congraçar tão-somente amigos é desgraçar-se.


Henryk Sienkiewicz
Cristo na
 Via Appia
Prêmio Nobel de literatura em 1905, o escritor polonês Henryk Sienkiewicz (autor do festejado romance quo vadis?) atesta o quanto é temerário entregar postos de relevante vulto a amigos, simplesmente porque eles são amigos. Quer uma evidência de tal ponto-de-vista? Imagine o leitor que está na Roma governada por Nero. O único pilar vivo do cristianismo é Pedro, a quem Cristo chamou de pedra angular da sua igreja. A matança de cristãos no obelisco do circo de Nero leva o psicopata ao êxtase. Pedro, de personalidade sempre oscilante (já havia negado o mestre três vezes no passado), resolve fugir da cidade. Já na via appia, tem uma visão. Cristo, carregando sua cruz, caminha em direção a Roma. Assim, Pedro, aturdido, indaga o rabi: “quo vadis, domine?” (aonde vais, senhor?). Jesus, de acordo com sermão de Santo Ambrósio, responde: “venio iterum crucifigi” (venho ser novamente crucificado).

Voltaire
A rigor, Cristo quis dizer algo do tipo: “já que não pude contar com o único amigo que tinha para apascentar meu rebanho, vim eu mesmo”. Envergonhado, Pedro voltou. Diz a patrística que foi crucificado de cabeça para baixo. Por outro lado, Paulo (talvez o maior inimigo que o cristianismo já teve) após converter-se nunca temeu a morte e jamais fugiu dela. Por isso, foi chamado apóstolo das nações, escolhido a dedo por Jesus para difundir seus ensinamentos. Um inimigo que se tornou o maior de todos os aliados, porquanto fosse capaz e competente. São Pedro que me perdoe, mas não abrirei mão da tese. Quando nos depararmos com um oponente talentoso, devemos perguntar-lhe: “quo vadis?” e trazê-lo para o nosso lado. Coligar-se com quem digladiávamos é usar o aço da espada na armadura. Por conseguinte, faço minhas as palavras de Voltaire: “Deus me proteja dos meus amigos. Dos inimigos, cuido eu”.

• Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 26 e 27 de outubro de 2008, Caderno B, p. 6.

2 comentários:

  1. O senhor sabe de quem é o pintor do Cristo carregando a cruz?
    Obrigada

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  2. O quadro é de um pintor italiano conhecido como Annibale Carraci (Fratello di Agostino e cugino di Ludovico, nascido em Bologna (1560) e falecido em Roma (1609).

    O quadro está exposto no National Gallery, Londres e foi pintado entre 1601 e 1602.

    o nome do quadro é Domine, Quo Vadis.

    Clóvis Barbosa

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