Aracaju/Se,

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

O Direito Penal do Inimigo

Artigo Pessoal

A batalha de Dunquerque
e o direito penal do inimigo
Clóvis Barbosa
Código Penal
Creio na irrecuperabilidade. Querer assumir uma postura de conciliação com o marginal em qualquer situação é temerário. Há bandidos que não podem ser vistos apenas como tais, mas como inimigos. Com o mero malfeitor contende-se tão-somente em dada circunstância; com o inimigo, contende-se a vida inteira. Quando se analisa um malfeitor, olhamos para trás (ele precisa ser censurado pelo que fez). Quando analisamos um inimi-go, olhamos para frente (ele deve ser anulado pelo que fará). Um malfeitor traduz uma preocupação. Um inimigo retrata a inevitabilidade do perigo. Daí, a necessidade de rever a filosofia penal que impregna o nosso ordenamento. Daí, a premência em conferir-se aos mecanismos de segurança pública mais versatilidade, no sentido de distinguir o bandido eventual do contumaz, dando ao Estado um salvo-conduto para tratar aquele como cidadão-infrator e este como inimigo.

Günter Jakobs
Até 1985, o penalista Günter Jakobs, teorizador do direito penal do inimigo, limitou-se a expor os postulados em que fundava a dogmática do novo modelo por ele idealizado. Motivado talvez pelo atentado terrorista de 11 de setembro, Jakobs, desde 2003, advoga a implementação da sua tese, afirmando-a, legitimando-a e justificando-a. Para ele, a quem também se atribui a criação do “funcionalismo sistêmico”, a finalidade do direito penal seria, em primeiro plano, garantir a efetividade da norma e, em segundo, resguardar os bens jurídicos mais elementares, a exemplo da liberdade, da vida etc. Assim, assegurar a autoridade da norma, buscando a todo custo seu não descumprimento seria de relevância superior à aplicação de uma pena em face daquele que já houvera infringido a lei. Em suma, a sanção estaria pautada não na culpabilidade de quem delinqüiu, mas na periculosidade de quem é capaz de delinqüir.

Philip Dick
O ianque Philip Dick, autor da novela minority report, homônima do filme de Spielberg, projetou para a ficção algo similar àquilo que, academicamente, foi delineado por Jakobs: o criminoso (inimigo) não pode ser neutralizado após a prática do ilícito, mas antes dele. Essa perspectiva inspirou Dick a conceber o chamado departamento policial do pré-crime, cujas engrenagens operacionalizavam-se na atuação de paranormais que anteviam o delito, identificando autor, vítima, horário, local etc. Policiais adestrados na prevenção ficavam incumbidos de interpretar os sinais fornecidos pelos clairvoyants, detendo o “infrator” ainda por ocasião dos atos preparatórios. Nossa polícia, obviamente, não se pode valer de uma divisão de pré-crime. Todavia, a ela podem ser outorgados instrumentos (legais, estruturais e políticos) que permitam evidenciar a doutrina de Jakobs sem quebrar os princípios da constituição.

Churchill
Antes de mais nada, a polícia precisa descobrir sobre quem lançar o estigma de inimigo. A título exemplificativo, Jakobs cita aqueles que delinqüem afetando a economia, aqueles que praticam terrorismo, aqueles que se organizam em quadrilhas, no sentido de enfrentar, com aparato e requinte, o Estado de direito, estupradores e demais autores de ilícitos perigosos, os quais normalmente se aperfeiçoam num quadro de violência contra o indivíduo. Sabendo quem é o inimigo, a polícia precisa conferir a ele tratamento ímpar. Numa palavra, tratamento de guerra. O inimigo não é um sujeito processual. O inimigo é uma anti-pessoa. Inimigo, na lição de Churchill, “é aquele que tenta matar você, não consegue e depois pede para você não matá-lo”. Parece uma ruptura com a filosofia que desenhou os direitos humanos. Sucede que essa conjecturável ruptura foi estabelecida não pelo Estado, mas pelo inimigo.

Timothy McVeigh
Os EUA já assimilaram a necessidade de aplicar o direito penal do inimigo. O ataque terrorista de 19 de abril de 1995, em Oklahoma City, tramado por Timothy McVeigh, é prova disso. Após a condenação, como demonstração de que sua mente era bosquejada segundo um modelo de singular psicopatia, McVeigh teve a oportunidade de ser submetido a um novo julgamento, já que vieram a lume documentos que poderiam alterar os rumos escolhidos pelo júri. Ainda assim, ele abriu mão dessa prerrogativa, declarando que deveria ser executado. Não estava arrependido e, se tivesse a chance de fazer o que fez novamente, faria. McVeigh é o protótipo clássico de inimigo: o que estampa nos olhos as cores da irrecuperabilidade. Logo, ele precisava ser tratado não por sua culpabilidade. Apenas pessoas devem ser tidas como culpáveis. McVeigh era uma anti-pessoa. Sua neutralização era imposta pela periculosidade.


Thomas Hobbes
Jean Jacques Rousseau
Immanuel Kant
Com efeito, o direito penal do inimigo lança suas bases em Rousseau, para quem aquele que não adere ao contrato social não é pessoa; em Hobbes, consoante o qual quem trai o Estado não deve ser sancionado como cidadão, mas como inimigo; em Kant, cujo pensamento aponta para a eliminação daquele que não se submete ao Estado legal. Por isso, uma polícia eficiente deve ter à disposição leis que agreguem maior severidade, ainda que desproporcional, no enfrentamento do inimigo. Política de segurança é política de paz. Contudo, quem quer a paz prepara-se para a guerra. Lembrem-se de Dunquerque. A burrice de Hitler foi não ter tratado franceses e ingleses como inimigos, supondo um armistício com a Grã-Bretanha ali onde detivesse o avanço das unidades panzer do general Kleist. Pois bem, Hitler copiou Napoleão onde não devia (no inverno russo), esquecendo-se de imitá-lo onde era imprescindível.




Adolf Hitler
Batalha de Dunquerque
Talvez não tivesse havido Dunquerque se Hitler guardasse a máxima napoleônica: “para obter a vitória definitiva, é preciso ser cruel”. Se não formos cruéis com os inimigos, se não admitirmos a “crueldade” da polícia contra quem é cruel com ela e conosco, perderemos a guerra. E o inimigo, tido por imbecis românticos como alguém que se deteriorou por causa da sociedade quando, a rigor, ele é a deterioração, vai explodir um prédio sobre cada um de nós.

(*) - Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de 5 de outubro de 2008, Caderno B, p. 9.

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