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quarta-feira, 25 de agosto de 2010

O Leito de Procusto

Artigo Pessoal

O leito de procusto
Clóvis Barbosa

Oton I
A culpa é de Oton I. Imbecil. Quis meter o bedelho na igreja, achando que não haveria reação. É o mal dos beligerantes. Supor que apenas a mãe deles pariu filho esperto. Depois de Oton I, vieram vários reis otonitas. Todos intransigentes. E intrometidos. Queriam nomear bispos e até escolher o papa. Isso gerou um problema medonho. A história deu ao imbróglio o nome de cesaropapismo. Patacoada pura. Ou você é césar, ou você é papa. Foi um mangue. Disso advieram o nicolaísmo e a simonia. Aquele, consistente no mundanismo dentro do qual o clero foi arremessado. Esta, traduzida na mercantilização da fé. Tinha padre vendendo lote no céu, dando conta de que o vizinho era São Paulo. Pode? O pau quebrou. Surgiu um tal de partido reformista. Isso já em pleno século XI. Era para mudar tudo na igreja, acabando, de uma vez por todas, com qualquer possibilidade de intromissão do monarca em seus assuntos.

Gregório VII
Hildebrando, correligionário dos reformistas (homem da cozinha de Nicolau II), seduziu o Santo Padre a estabelecer que a escolha dos futuros pontífices se daria mediante escrutínio no colégio de cardeais. Fim do cesaropapismo. E início do pontificado de Hildebrando. Com o título Gregório VII, Hildebrando assumiu o trono de Pedro, eleito pela resolução do povo romano. Adotou normas brutais. Agora, a igreja mandaria na igreja. Bulhufas para o rei. Viu no que deu? Quando o poder quer se imiscuir em outro, a guerra é certa. E não é santa. Mas Gregório radicalizou. Acabou com o nicolaísmo, constituindo o celibato. Findou com a simonia, proscrevendo a escolha de bispos pelo império. Cacete! Quem disse que Henrique IV, governante germânico, gostou? Destituiu o papa. E o papa? Ora, excomungou Henrique. O episódio ficou conhecido como “a querela das investiduras”. Quem ganhou? Difícil dizer.

Henrique IV
Certo é que o idiota do Henrique IV, vendo que o embate com Sua Santidade lhe fraturaria alguns ossos, jogou a toalha branca. Pediu arrego. Fala-se que seus asseclas o admoestaram: “Majestade, peça perdão ao papa”. E não é que ele foi? Ficou três dias à frente do palácio papal, nos Alpes italianos, descalço, num frio de dar congestão, até que Gregório achou por bem absolvê-lo. Lascou-se. Ao voltar, sua corte já empossara outro rei, um tal de Rodolfo da Suábia. Henrique pelejou com Rodolfo, até que este morreu em 1080. Como vingança, elegeu um anti-papa, Clemente III, obrigando Gregório VII a morrer no exílio, em Salerno. Pois bem, Gregório foi canonizado em 1606. Já Henrique IV foi impelido a abdicar em 1105. Por quem? Por seu próprio filho, Henrique V. É o fim de todo absolutista arrogante, que atribui à vontade da maioria o desprezo que ele deveria atribuir ao reflexo que projeta no espelho.

Castro Alves
Ainda estamos na idade média. Já disse. A responsabilidade é de Oton I. Por ele, há uma turminha de imperadores otonitas, todos imberbes, que se arvoram no fato de terem sido aprovados num difícil concurso público de provas e títulos, para arrotar que, por causa disso, podem até depor o papa. Interessante. Assim como Gregório VII, vereadores, prefeitos, deputados, senadores e governadores foram eleitos pela vontade popular. Isso os legitima. Isso, metaforicamente, os canoniza. A pia batismal do voto é sacrossanta. Confere autoridade. Mesmo assim, os concursados, proprietários de um poder secular vitalício, crêem que sua investidura é melhor. Daí, por conta de qualquer deslize (o menor que seja), querem tirar prefeitos, vereadores, etc. do trono que o povo lhes deu. Aos novos Henriques, indico não necessariamente o estudo da Idade Média, mas a leitura de Castro Alves: “a praça é do povo como o céu é do condor”.

Teseu e Procusto
Urna para votar
Brasil 
Em democracias como a que se degusta nos EUA, defensores, delegados (xerifes), promotores, juízes, etc. são eleitos. Fazem campanha e pedem voto. Por quê? Porque só se faz democracia com “certo” e “errado” quando o acerto e o erro são apontados pelas mãos de um agricultor ou de um vaqueiro, e não pelas mãos de um burguês que se embevece com livros, mas não anda na praça. Diz a mitologia que um monstro chamado Procusto tinha um leito de ferro, onde deitava suas vítimas. Se a vítima fosse maior do que o leito, Procusto amputava o excesso, nos braços ou nas pernas; se menor, ele esticava-a até alcançar o tamanho do leito, levando-a à morte. Teseu executou Procusto, deitando-o transversalmente no próprio leito e decapitando as sobras. Eram muitas. Eis o impasse. Quem se acha dono do tamanho dos outros e do tamanho do povo acaba correndo o risco de perder braços e pernas. E quem sabe, até a cabeça.

• Publicado no Jornal da Cidade, edição de domingo e segunda-feira, 2 e 3 de novembro de 2008, Caderno B, pág. 9.

Um comentário:

  1. Bem lembrado, afinal, "Todo poder emana do povo", que é o verdadeiro titular, desde a sua acepção originária.
    Diogo.

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