Artigo Pessoal
Agar no deserto
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Sandra Gomide |
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Pimenta Neves |
Pimenta Neves queria advogar. Mangação. Neves é aquele jornalista que, em 2000, matou a namorada por ciúmes. Sandra Gomide (a vítima), uma jovem com pouco mais de trinta anos, deu um fim no relacionamento que mantinha com o sessentão porque se apaixonara pelo equatoriano Jaime Mantilla. Mas isso não vem ao caso. Relevante é a atração que o assassino agora nutre pela advocacia. Talvez porque também tencione matá-la. Com efeito, é o que iria suceder se a OAB-SP não desse um basta no surto do sociopata. Preconceito? Não. Admitir um homicida na OAB é o mesmo que aceitar um sádico tratando feridos de guerra ou um pedófilo como diretor de creches e orfanatos. A advocacia veio ao mundo com o propósito de defender a liberdade e a vida. Coisas das quais Pimenta não entende patavina. A uma porque não deixou Gomide livre para escolher com quem viver. A duas porque nem a deixou viver.
Creio até que não era necessário recorrer à lei para brecar a sandice de Neves. Tudo bem que o estatuto da advocacia diga que uma das exigências para que o bacharel venha a ser advogado esteja ali onde ele apresente “idoneidade moral” (art. 8º, inciso VI, da lei nº 8.906/1994. Tudo bem que o mesmo estatuto prescreva que não é idôneo quem exibir uma condenação por crime infamante. Tudo bem que infamante seja aquele crime que atribui má-fama ao delinqüente (infamante ainda carrega essa acepção, a não ser que a reforma ortográfica também seja semântica). Tudo bem que Pimenta Neves não tenha lá uma das melhores famas (ele só matou a namorada com dois tiros, um dos quais na cabeça – que bobagem). Tudo bem para tudo isso. Mas a lei era o que menos importava agora. O direito não se resolve na lei. O direito resolve-se a partir da lei. O direito, a rigor, resolve-se na ordem. Neves advogar é desordem.
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Goffredo Telles Jr |
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Jan Christiaan Smuts |
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Pierre-Félix Guattari |
Quando concebeu o “direito quântico” (na década de 1970), o professor Goffredo Telles Jr. sonhava com uma dimensão holística para a ciência. O vocábulo “holismo” foi usado pela primeira vez no final da década de 1920, por um sul-africano: Jan Christiaan Smuts. O holismo, em verdade, traduz uma filosofia segundo a qual a energia que regula todo o universo mantém-se harmônica em quaisquer das manifestações de existência. Seja na biologia, na física, na química, no direito etc. O que irá definir a ordem das coisas será aquilo que o filósofo bretão Pierre-Félix Guattari conceitua como “o domínio molecular do desejo, da inteligência, da sensibilidade”. Por exemplo, você já se perguntou por que o homicídio é repudiado em toda e qualquer civilização, por mais primitiva que ela possa transparecer aos olhos? Porque a “ordem” da vida, que a inteligência emana, está como que impregnando nossa alma genética.
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Gregório Matos |
O que for além da ordem será desordem. O ficar aquém da ordem também será desordem. Como cantou Gregório de Matos Guerra “e feito em partes todo em toda parte, em qualquer parte sempre fica o todo”. Veja que o “boca do inferno”, já no século XVII, tinha a noção holística de acordo com a qual a parte, embora retirada do todo, não perde a impressão genética com que este a dotou. Bem assim o todo, que não deixa de sê-lo porque lhe suprimiram uma das partes. Daí, dizer Gregório, no mesmo poema, que quando encontraram um braço do menino Jesus, não toparam apenas com o braço. Depararam-se com o menino Jesus em inteireza, porquanto o “braço, que lhe acharam, sendo parte, nos disse as partes todas deste todo”. Quem via o braço, via o Cristo. Bonito. Se Neves viesse a ser advogado, quem olhasse pela OAB veria uma alcatéia. E quem olhasse para Neves, veria a OAB com a tez genética do crime.
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Agar no Deserto |
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Abraão |
A bíblia ensina que “assim como algumas moscas mortas podem estragar um frasco inteiro de perfume, assim também uma pequena tolice pode fazer a sabedoria perder todo o valor” (Ec 10,1). Caso Pimenta Neves passasse a ser parte da OAB, o aroma de liberdade que ela sempre exalou se dissiparia. Em seu lugar ficaria uma cor fétida de morte. Aliás, a mesma bíblia, no gênesis, narra a história de Agar, escrava de Abraão. Ali é dito que, como Sara, esposa do patriarca, era estéril, ela consentiu que Abraão deitasse com Agar e nela fizesse um filho. Nascida a criança (Ismael), Agar passou a humilhar Sara, solapando a alegria da família. Como punição, Agar foi abandonada no deserto de berseba. E Sara voltou a ter paz. Numa palavra, a quebra da harmonia não é holística. Rompe com o equilíbrio “genético”. Causa um câncer no convívio. O lugar de Pimenta Neves não era a casa da liberdade. É o deserto.
• Publicado no Jornal da Cidade, edição de terça-feira, 9 de dezembro de 2008, Caderno B, pág. 11.
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