Aracaju/Se,

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

O homem que calculava






Artigo Pessoal

O homem que calculava
Clóvis Barbosa

Eu e Cleomar
A morte de Cleomar Brandi, no dia 17 deste mês, um dos melhores textos do jornalismo sergipano, comoveu a tudo e a todos, não somente pela figura cheia de vida que era, mas, também, pelo inusitado velório realizado na Colina da Saudade. Ao ser sepultado, no dia seguinte, uma chuva repentina misturada com um sol ardente transformou-se num arco-íris encantador, como que quisesse, a natureza, também, prestar a sua homenagem. Andei um tempo com Cleomar pelos quiosques da antiga orla da Atalaia, o 39, de Eliseu, e o 40, ao lado de Eugênio Nascimento, jornalista, o José Eduardo Souza, médico, Arlinda, então musa de Cleomar, Lula Andrade, cinegrafista, Américo, um dos melhores técnicos em rádio e TV e sua Dinha, além de outros companheiros. Estava vivendo um momento tenso de minha vida. Como presidente da OAB-SE e advogado militante criei confusão com alguns criminosos do aparelho policial do Estado, com comerciantes e com o status político da época. Trabalhava pelo dia e a noite tentava descobrir a autoria das diversas ameaças sofridas, culminada por uma escopetada desferida contra a janela da minha residência. Nessas andanças noturnas encontrava-me com Cleomar e amigos para beber e trocar idéias sobre o cotidiano. Ali aprendi “que era melhor morrer de vodka do que de tédio”, como diria Maiakóvski. Depois, os afazeres profissionais me afastaram e só esporadicamente é que os encontrava nos bares da vida e de Aracaju. Mas Cleomar, antes de partir, deixou uma carta sob o título “A última saideira”, onde ele se despede da vida, da sua velha “bahêeêa”, da sua Aracaju e dos seus amigos.
A última saideira no Bar do Camilo
Ao final, sentencia poetizando: “Um dia, o velho barril de carvalho pinga sua última gota de conhaque. E o poeta se despede de tudo sem tristezas nem vexames”, mas “Apenas sabendo que cumpriu seu papel com dignidade, com honestidade e com um brilho de criança nos olhos. Quem sabe, eu encontre o amarelo dos girassóis nesse novo caminho?”. Abaixo, um post-scriptum: “os amigos estão convidados para a última saideira no Bar do Camilo, assim que terminar o sepultamento. Já está pago”. E o Bar do Camilo recebeu os amigos de Cleomar Brandi, após o sepultamento, oportunidade em que todos tomaram, naquele dia, ao som de musica, a última saideira com o “guerreiro”. Essa criatividade de Cleomar nos faz lembrar outros casos pitorescos ocorridos com o segundo evento mais importante do homem: a morte. Os sumérios, por exemplo, não davam muita importância à vida após a morte. A rainha Shudi-Ad, rainha de Ur, que viveu no ano 2.500, antes de Cristo, preparou antecipadamente o seu próprio funeral, marchando para o seu túmulo com sessenta e quatro criadas, uma carruagem de madeira contendo ornamentos em ouro e prata, puxada por dois bois, quatro mulheres harpistas e seis soldados. Cada um dos membros da festa-funeral recebia uma bebida numa pequena taça, inclusive a rainha que estava à época com quarenta anos de idade. Todos os corpos, ou esqueletos, foram encontrados em sereno repouso, sem um diadema ou adorno sequer fora do lugar. Arqueólogos encontraram na Suméria vários casos de enterros em massa precedida por supostas festas.
Noel Rosa

A paixão também tem sido lembrada no momento do velório, como na música do genial Noel Rosa, “Fita amarela”, onde ele dizia “Quando eu morrer, não quero choro nem vela, quero uma fita amarela gravada com o nome dela. Se existe alma, se há outra encarnação, eu queria que a mulata sapateasse no meu caixão. Não quero flores, nem coroa com espinho, só quero choro de flauta, violão e cavaquinho. Estou contente, consolado por saber, que as morenas tão formosas a terra um dia vai comer. Não tenho herdeiros, não possuo um só vintém, eu vivi devendo a todos, mas não paguei a ninguém. Meus inimigos que hoje falam mal de mim, vão dizer que nunca viram uma pessoa tão boa assim”. Em Porto Rico, David Morales Colón, de 22 anos, foi velado em cima de sua moto, uma Honda Repsol, em posição de largada. Também em Porto Rico, Angel Pantoja Medina, de 24 anos, exigiu antes de morrer, que se usasse um tipo especial de embalsamento para manter o seu corpo em pé por três dias durante o velório na casa de sua mãe, usando um boné do New York Yankees e óculos escuros. Jack Benny era casado com Sayde Marks há quarenta e oito anos. Segundo uma fonte, ela era amarga e muito exigente. E ele, por sua vez, era bastante mulherengo. Após o funeral de Benny, um florista passou a entregar uma única rosa vermelha a Sayde, dia após dia. Aborrecida, após algum tempo, exigiu do florista que lhe dissesse quem estava mandando as flores. É que Benny cuidou para que a esposa recebesse uma rosa todos os dias pelo resto de sua vida. Ela ainda viveu nove anos.

Malba Tahan

Malba Tahan, heterônimo do professor Júlio César de Mello e Souza, autor da festejada obra “O homem que calculava”, que narra as peripécias do calculista persa Beremiz Samir na Bagdá do século XIII, cujo problema do pagamento dos oito pães com oito moedas já foi objeto de artigo de minha autoria neste jornal, achava horrível a literatura funerária que cunhava em coroas de flores expressões tipo homenagem eterna, recordação sincera, o último adeus. Antes de morrer, aos 79 anos, após ministrar uma palestra em Recife, deixou uma carta para a família a instruindo como deveria ocorrer o seu velório. Rejeitava qualquer tipo de coroa ou flores com qualquer tipo de mensagem. E se alguém insistisse, a coroa deveria ser devolvida com um “delicado cartão” para que o ofertante fizesse da coroa o uso que quisesse. O funeral, como exigido pelo escritor, deveria ser o mais modesto possível e o caixão deveria ser de terceira classe. Ao seu enterro, no Cemitério do Caju, no Rio de Janeiro, compareceu grande número de pessoas, todas religiosamente comportadas e obedecendo as exigências do falecido e, se algumas flores constavam do ato, as mesmas foram ofertadas anonimamente, sem qualquer dedicatória. Também, na oportunidade, foi lida uma mensagem de Malba Tahan, onde ele renovava a sua defesa pelo fim do isolamento e do preconceito contra os doentes de hanseníase. Por fim, citava a letra da música “Silêncio de um minuto”, de Noel Rosa, como imperativo da sua ojeriza ao luto: “Roupa preta é vaidade para quem se veste a rigor. O meu luto é a saudade e a saudade não tem cor”.
(**) Publicado no Jornal da Cidade, edição de domingo e segunda-feira, 31 de julho e 1º de agosto de 2011, Caderno A, p. 7.

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