Aracaju/Se,

segunda-feira, 31 de maio de 2010

O Direito Achado na Rua

O cobrador de impostos de Jericó,
a teoria social da ação
e o direito achado na rua



Em dezembro de 1948, a assembléia geral das nações unidas proclamou a declaração universal dos direitos humanos. Resultado das atrocidades testemunhadas na 2ª. Guerra, a declaração deu especial atenção à dignidade humana como postulado. Quarenta anos depois, o Brasil promulgaria uma constituição. A carta de outubro, como é chamada por aqui, ali no art. 1°, III, estabelece ser um dos fundamentos da república a dignidade da pessoa humana, associando a ela os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Interessante que a declaração universal dos direitos humanos, no art. XXIII, n° 1, diz que toda pessoa tem direito a condições justas e favoráveis de trabalho, bem como à proteção contra o desemprego. Há outros direitos sociais mencionados no art. XXIII. Contudo, o art., XXV parece ser mais contundente, ao determinar que “toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego”. Escandaloso é que, no Brasil mais de 40 milhões de pessoas acham-se vivendo abaixo da linha de pobreza. Viver abaixo da linha de pobreza, segundo o IBGE, significa ganhar, por dia, menos do que US$ 0,25 (vinte e cinco centavos do dólar), o que equivale a perceber, mensalmente, algo na casa dos R$ 13,17 (treze reais e dezessete centavos).

Em julho de 2003, sancionou-se a lei n° 10.695, que deu nova redação ao art. 184 do Código Penal. Esse artigo trata da criminalização da conduta de quem viola direitos autorais: a pirataria. As penas para a pirataria variam de três meses de detenção a quatro anos de reclusão. Como se vê, pirataria dá cadeia, malgrado muitos dos brasileiros que vivem abaixo da linha de pobreza, e até alguns que vivem acima dela, façam desse ilícito uma profissão. Ora, mas quem quereria viver com um salário de R$ 0,44 (quarenta e quatro centavos) por dia? Quarenta e quatro centavos são capazes de oferecer condições justas e favoráveis de trabalho? Quarenta e quatro centavos garantem direitos sociais, como saúde, bem-estar, alimentação, vestuário, habitação e cuidados médicos? Por coisas como essas, foi que, em 1987, um ano antes da promulgação da CF de 88, intelectuais da UNB fundaram o chamado “direito achado na rua”. Fruto de pesquisas concentradas no âmbito do núcleo de estudos para a paz, essa corrente teve como grande scholar o prof. Roberto Lyra Filho, para quem o direito só teria significado se partisse de uma análise da prática social, fincada no empirismo e na disputa aberta pela vitória da justiça sobre a lei. Por conseguinte, Lyra Filho consubstanciava seus pontos de vista em pensamentos alternativos, heterodoxos e, antes de mais nada, não-conformistas.Numa palavra, o direito achado na rua realiza uma “leitura dialética do fenômeno jurídico”.                         
 
O direito achado na rua não é invenção exclusivamente nacional. Os anglo-europeus já haviam pensado o people’s law of the streeets e os franceses já tinham concebido o droit qu’on trouve dan la rue. Flexibilidade é a palavra-chave do direito achado na rua. Plagiando o próprio prof. Lyra Filho, “o direito só pode ser compreendido como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”. Para ele, o direito “nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos e sua filtragem, nas normas costumeiras e legais, tanto pode gerar produtos autênticos, quanto produtos falsificados”. Produtos falsificados, para Lyra Filho, seriam, por exemplo, “as leis que representam a chancela da iniqüidade, a pretexto da consagração do direito”. Essa concepção marxista, também cognominada “humanismo dialético”, detecta na metáfora da rua (que aponta para a polis) a metamorfose da “multidão de solitários urbanos em povo”, conclamando “a rua da cidade para a vida humana”, consoante preconiza Marshall Berman, em “tudo que é sólido desmancha no ar”. Em suma, o operador do direito deve “reivindicar a rua para a vida”. A vida nasce na rua. O direito nasce na rua. O povo idealiza a rua. O povo, como Castro Alves canta: “A praça! A praça é do povo, como o céu é do condor”. De modo bem simplista, o direito achado na rua pugna por uma recriação do ordenamento, tendo nas massas seu centro gravitacional de criatividade.

A edificação de uma cidadania sócio-jurídica é a meta do direito achado na rua. O direito achado na rua ambiciona “relações de trabalho mais livres”; deseja pôr um termo na opressão que um indivíduo lança sobre outro. Disso, advêm algumas reflexões: estimativas dão conta de que aproximadamente três milhões de pessoas assistiram à versão pirata do filme “tropa de elite”. Ao invés de dar um tratamento criminal a esses indivíduos, os produtores da obra foram buscar o direito na rua e, dentro de uma concepção humanisticamente dialética, vislumbraram a alternativa de propiciar-lhes a expiação pelo “pecado” que cometeram. Abriu-se uma conta, na qual cada um dos “infratores” poderá fazer um depósito, idêntico ao valor do ingresso de cinema, o qual será revertido em favor do instituto nacional do câncer. Bela e criativa sociabilização. O fisco, entretanto, lançou mão de outra postura. Agora, no Pré-Caju, vai apreender todos os CDs e DVDs piratas que estiverem sendo comercializados no itinerário da festa, alem de enquadrar os “marginais” nos rigores da lei. Não é assim que quer o art. 184 do Código Penal? Parabéns ao fisco, que não achou o direito na rua, mas nos códigos. Não deixa de ser uma perspectiva. Nada zetética; totalmente dogmática. Os auditores, certamente, cumprirão a lei. Difícil é saber se aperfeiçoarão os ditames da justiça, em face de um povo que vive abaixo da linha de pobreza e que perscruta na rua os seus direitos.

Essa dicotomia, todavia, é intransponível. Historicamente, cobradores de impostos sempre foram colocados ao lado de prostitutas e pecadores. Que o diga a bíblia (Mateus 21,32 e Marcos 2,16). Ainda assim, Cristo hospedou-se na residência de Zaqueu, talvez um dos mais contumazes cobradores de impostos de Jericó. Sucede que Zaqueu arrependeu-se das extorsões e acusações falsas que praticou para arrancar tributos. Jocosamente, talvez tenha achado, na rua, o direito das suas vítimas. Em verdade, o fisco federal não extorque e tampouco acusa os cidadãos que vivem abaixo da linha de pobreza. Quem faz isso é lei. Mas a lei é menor do que o ordenamento jurídico. Na Alemanha, por exemplo, tutelou-se a teoria social da ação, oriunda do gênio de Jeschech e Wessels. Para essa teoria, ação “é a conduta socialmente relevante”. Daí, perguntar: é socialmente relevante a conduta de quem pirateia por viver abaixo da linha de pobreza, procurando, assim, sobreviver com dignidade, como quer a declaração universal dos direitos do homem? É correto exigir conduta diversa dessa pessoa? Em 1998, Luiz Vicente Cernicchiaro, então ministro do STJ, ao relatar o recurso especial nº 112.600, disse: “Cumpre considerar o sentido humanístico da norma jurídica. E mais. Toda lei tem significado teleológico. A pena volta-se para a utilidade”. Pois bem, qual a utilidade em reprimir aquele que, vivendo abaixo da linha de pobreza, vende um CD ou DVD pirata?

Por conta disso, é que se trata o fisco como leão. Sucede que a mesma bíblia, que apresenta um Cristo que come com cobradores de impostos, preconiza: “como um leão furioso ou um urso feroz, assim é o governo mau que domina um povo pobre” (Provérbios 28,15). Seria precipitado dizer que o governo é mau. As leis brasileiras, no entanto, por não terem sido achadas na rua, são más. Os auditores federais, porém, embora cumpram leis más, agem de boa-fé, dando cabo de uma norma que foi achada em qualquer lugar, menos na rua, menos nas praças. Uma lei talvez achada no gabinete de um performático esquizofrênico, que pensa sob o pálio de um ar-condicionado. Ainda assim, um conselho para o pessoal do fisco, também tirado da bíblia: “não fiques justo demais. Por que causar a ti mesmo a desolação?” (Eclesiastes 7,16). É suficiente a desolação de quem ganha menos do que R$ 0,44 por dia.

* Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 13 e 14 de janeiro de 2008, Caderno B. página 8.

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