sexta-feira, 9 de julho de 2010
A Lei de Imprensa e o Último Rei da Escócia
Artigo Pessoal
A Lei de Imprensa e o Último Rei da Escócia
Clóvis Barbosa (*)
Sabe aquela sensação que nos faz crer que tal pessoa é boa, sem sê-lo? Pois bem, a estrutura psicanalítica dessa leitura míope da realidade encontra seu arcabouço traçado pela bíblia. Parece que tudo está no livro sagrado do cristianismo. Surpreendente é que está mes-mo. Na segunda carta aos coríntios, capítulo 11, vesículo 14, o apóstolo Paulo diz que não deveríamos nos impressionar com falsos enviados do messias, ressaltando que a existência desse tipo de gente “não é de admirar, pois até Satanás pode se disfarçar e ficar parecendo um anjo de luz”. Numa palavra: o diabo às vezes reside na luz. Isso, por exemplo, foi captado pela lente de Kevin MacDonald, diretor do filme “o último rei da Escócia”. Nele, MacDonald destrincha a carreira política do ditador de Uganda, Idi Amin Dada, interpretado pelo estonteante Forrest Whitaker, que, por conta do irretocável trabalho, ganhou o oscar de melhor ator em 2007.
O enredo é sedutor, assim como a luz é sedutora. Dizem os anais da história que Idi Amin era uma amante da cultura escocesa. Por isso, contratou como seu médico particular um escocês, o doutor Nicholas Garrigan. Sucede que maior do que a paixão de Amin pela Escócia era a abnegação de Garrigan pelo ditador, em parte resultante do carisma que a oratória desse meganha implantava nos corações daqueles que o ouviam discursar. Amin chegou a declarar, em dado momento de sua célere carreira despótica, que se considerava “a figura mais poderosa do mundo”. Ora, lengalengas à parte, o certo é que o doutor Garrigan se viu em maus lençóis, sendo forçado, inclusive, a fugir de Uganda para não morrer nas garras de Amin, que governou de 1971 a 1979, tempo durante o qual chacinou mais de 300 mil ugandenses. Em síntese, um escocês lúcido, medico, acreditou que um assassino seria, digamos, “um anjo de luz”.
Há quem acredite, agora, que o STF está para produzir uma decisão iluminada, caso declare que a Lei de Imprensa não foi recepcionada pela CF de 88. Demonstramos o equívoco desse ponto-de-vista em artigo publicado há duas semanas. Ainda assim, houve quem dis-cordasse em parte da nossa postura, lançando mão de argumentos tipicamente retóricos: “a Lei de Imprensa é um resíduo da ditadura”, “a Lei de Imprensa está na escuridão dos calabouços em que militares torturavam jornalistas” etc. Será mesmo? Procurei dialética nesses postulados. Mas não há. Parece o discurso que Idi Amin Dada usou em 1971, quando depôs o presidente Obote em Uganda. Interessante é que o próximo passo foi dissolver o parlamento. Raciocinemos, portanto (e o STF já sinalizou para essa conseqüência natural): expurgada a Lei de Imprensa, sobejará o que para os jornalistas, em sede de abuso na liberdade de manifestação do pensamento?
Resposta: o restante do ordenamento. Vale dizer, o código penal, o código civil, a própria constituição. E algo precisa ser categorizado, com menos poesias e mais prosa: a CF assegura, no art. 5°, IV, que é livre a manifestação do pensamento. Contudo, a mesma CF, no mesmo artigo, desta feita no inciso X, apregoa que a violação da imagem das pessoas gerará direito a indenização pelo dano material ou moral dela decorrente. Por conseguinte, ainda que não haja Lei de Imprensa para “censurar” jornalistas, haverá um código penal e haverá um código civil, o primeiro recepcionado pela CF e o segundo de constitucionalidade jamais questionada. Daí a indagação: que vantagens os jornalistas terão com a eliminação da Lei de Imprensa? Sinceramente, não sei. Mas permitam-me apontar as inúmeras desvantagens, dando especial enfoque ao aspecto penal, certamente o que mais interessa aos jornalistas, radialistas, etc.
(01) Pela Lei de Imprensa, alguém que, supostamente, tenha sido ofendido por um jornalista terá, no campo penal, três meses para ajuizar queixa-crime ou ofertar representação criminal; pelo código penal, o prazo é maior: seis meses. Perde o jornalista com o prazo mais elástico. (02) A prescrição, pela Lei de Imprensa, independentemente da pena a ser aplicada, ocorre em dois anos; pelo código penal, poderá chegar a oito. E nem venham dizer que, como o STF não suspendeu o art. 41 da Lei de Imprensa, embora se aplique o código penal, o prazo prescricional continuaria sendo o de dois anos. Nada disso. O STF já decidiu que não pode o magistrado misturar o que há de bom em uma lei com o que há de bom em outra, sob pena de fazer as vezes de legislador. Ou uma lei na íntegra, ou outra, também na íntegra. Sobrou o código penal. Quem ganhou com isso? Não sei. Só sei que os jornalistas soçobraram.
(03) Pelo art. 43, § 1º, da Lei de Imprensa, o juiz, antes de decidir se recebe, ou não, a queixa ou denúncia, garantirá ao jornalista uma defesa prévia, grande oportunidade de convencer o magistrado acerca da inexistência de qualquer ilícito, impedindo o desenvolvimento do processo. Extirpada a Lei de Imprensa, não haverá a prerrogativa. (04) Pelo art. 73 da Lei de Imprensa, só há reincidência específica, ou seja, só será considerado reincidente o jornalista que já tiver contra si prolatada, e com trânsito em julgado, sentença condenatória por outro crime de imprensa. Diante disso, pergunto por que os encômios. Paciência. O Dr. Garrigan não venerou Idi Amin Dada? Mas essa conversa de que a Lei de Imprensa foi concebida na ditadura é verborragia. O mentor da Lei de Imprensa, Freitas Nobre, a concebeu anos antes do golpe militar de 1964, tendo sido um dos maiores defensores das liberdades. Aliás, foi perseguido por isso.
Intrigante é que toda essa quizila sobre a Lei de Imprensa tem sido conduzida à revelia da biografia de Freitas Nobre. Em 25 de outubro de 2005, por ocasião da passagem dos trinta anos da morte do jornalista Vladimir Herzog, o nome de Freitas Nobre foi lembrado de for-ma honorífica como defensor da imprensa, essa mesma imprensa que, de uns dias para cá, acha o código penal melhor do que a lei que nasceu para protegê-la. Abestalho-me. O código penal saiu da cabeça de um grande jurista: Nelson Hungria. Mas o código penal veio à tona em um período eminentemente ditatorial. Nelson Hungria foi nomeado Ministro do STF por um ditador: Getúlio Vargas. O grande Nelson Hungria manchou sua biografia com um episódio patético, em que rasgou uma decisão judicial, prolatando outra em seu lugar para agradar um sociopata, que fez história na pior fase da imprensa brasileira: Assis Chateaubriand.
Diploma ditatorial por diploma ditatorial, fico com a Lei de Imprensa. Fico com Freitas Nobre. Fico com Vladimir Herzog. Fico com a guerrilha de Uganda. Ao mesmo tempo, nutro preocupação com os jornalistas que aplaudem o possível fim da Lei de Imprensa, fazendo-me recordar o jovem médico Nicholas Garrigan, que supunha ver um amigo em Idi Amin Dada. Curioso, venceu o inimigo. O perigo está exatamente aí. Porém, quando os jornalistas descobrirem que a derrocada da Lei de Imprensa interessa mais ao “inimigo” será tarde. E, como ensinava Walter Benjamin, “se o inimigo vence, nem os mortos estão seguros”.
(*) - Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 30 e 31 de março de 2008, Ca-derno B, página 12.
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Realmente um absurdo a pretenção de se declarar a inconstitucionalidade da Lei de Imprensa. Se isto ocorrer - espero que não - a democracia sofrerá grande regressão.
ResponderExcluirJulio Calmon de Passos Ramos
Advogado
Salvador-BA
Júlio,
ResponderExcluirEste artigo foi publicado no Jornal da Cidade, matutino daqui de Aracaju, em 30 de março 2008,portanto há doiis anos atrás. O Supremo já julgou, em 2009, e suspendeu os efeitos da Lei,considerando-a inconstitucional, ou mais especificamente, não recepcionada pela Carta de 1988.