Aracaju/Se,

segunda-feira, 5 de julho de 2010

O Senhor do Labirinto

Artigo Pessoal

O STF, a fidelidade partidária
e o senhor do labirinto

Tolera-se um advogado insipiente; mas pusilânime, não. A covardia traduz o pior defeito que alguém que labora no fórum pode externar. Aliás, a covardia é a mais indesejada distorção do caráter humano. As grandes civilizações trazem em suas histórias personagens corajosas. Do contrário, não teriam sido grandes. Entre os judeus, Abraão enfrentou a divindade, questionando a justiça da destruição de Sodoma (Gên 18, 22-33). Antes de Abraão, Noé conseguiu fazer com que seu Deus se arrependesse de ter assolado a terra com um dilúvio (idem, 8, 18-22). A mitologia helênica narra que Hera, instigada por Poseidon, pediu ajuda tanto a Afrodite quanto ao deus Sono para ludibriar Zeus, a fim de que os gregos passassem a ter vantagem na batalha que, injustamente, estava sendo vencida por Tróia (Ilíada, canto XIV). São esses os exemplos que devem inspirar os advogados: o do herói ou semi-deus intimorato.

Se necessário, o advogado deverá enfrentar até mesmo aquele que comanda a humanidade lá do Olimpo. Afinal de contas, quem é que constrói a jurisprudência de qualquer país? Juízes são inertes. Não estão autorizados a dizer nada, até que tenham sido provocados por quem pode fazê-lo: o advogado. No nosso sistema, porém, dogmático por excelência, que deveria achar nas normas emanadas de uma casa legislativa o postulado da “inegabilidade dos pontos de partida” (produto do gênio de Niklas Luhmann), o STF começou a confeccionar “leis”. E o pior: está fazendo isso, sob a explicação de que sua postura é, a rigor, interpretação da constituição federal. Coisa nenhuma! No fatídico episódio da fidelidade partidária, o STF, ressalvados os nomes de Eros Grau, Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski, atropelou a independência das funções do Estado, outorgando o benefício do desprezo para o congresso.

A hecatombe é vista ali: outubro de 2007. O DEM, o PPS e PSDB impetraram mandado de segurança contra o presidente da câmara dos deputados, alegando que essa autoridade não observara direito líquido por eles ostentado, no sentido de declarar que os mandatos de parlamentares eleitos sob suas cores, os quais haviam migrado para outras siglas, lhes pertenceriam. Logo, os parlamentares deveriam perder os cargos, os quais passariam a ser ocupados pelos suplentes fiéis dos partidos. Como o presidente da câmara não atendeu ao pleito, a questão chegou ao STF. Os partidos impetrantes basearam seus pontos-de-vista em decisão que o TSE tomou, ao apreciar a consulta nº 1.398-DF, por intermédio da qual a corte eleitoral patenteou: o mandato é do partido; jamais, do candidato. Essa idiossincrasia adviria do fato de a eleição ser proporcional, ou seja, a representatividade seria partidária, e não pessoal.

Pronto. Iniciada a discussão, o STF, por maioria, indeferiu o mandado de segurança. Mas fez isso no seguinte diapasão: três ministros (Eros Grau, Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski) votaram pela impossibilidade da perda dos mandatos; dois (Carlos Britto e Marco Aurélio) votaram pela perda do mandato dos parlamentares “infiéis”; os demais (maioria) declararam que o mandato é do partido, mas ressalvaram que, como a decisão que o TSE proferiu, em face da consulta nº 1.398-DF, só foi publicada em 27 de março do ano passado, apenas a partir dessa data é que parlamentares eleitos por uma sigla, mas que tivessem mudado para outra, poderiam ser julgados infiéis, isso em respeito à segurança jurídica, já que, agora, o STF alterava o entendimento para passar a aceitar perda de mandato por infidelidade partidária. Sinceramente, um juízo que não merece qualquer encômio, mas apupo e zombaria.

Por quê? Porque nenhuma decisão é sóbria quando gera a deformidade do sistema. A perda de mandato por “infidelidade” era coisa da ditadura, instituto típico da constituição de 67, com a redação que lhe foi dada pela emenda nº 1, de 69. Ainda antes da redemocratização, a emenda nº 25, de 85, acabou com essa hipótese de perda do mandato. Com efeito, a carta de 88, malgrado consagre o princípio da fidelidade partidária (art. 17, § 1º), não prevê a infidelidade como causa ensejadora da perda de mandato (art. 55). Segundo ela, um parlamentar perderá o mandato quando: (1) infringir as proibições do art. 54 da CF (firmar contrato com autarquia, por exemplo); (2) portar-se indecorosamente; (3) faltar a um terço das sessões ordinárias; (4) perder os direitos políticos (com o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, por exemplo); (5) a justiça eleitoral, nas situações fixadas pela CF, assim o determinar.
  
Certos incautos têm argumentado que o fato de o art. 55, V, da CF dizer que um parlamentar poderá perder o mandato “quando o decretar a justiça eleitoral” abarcaria a hipótese da infidelidade. Sucede que a dicção constitucional é “quando o decretar a justiça eleitoral, nos casos previstos nesta constituição”. Acontece que, em nenhum momento, a CF prevê a possibilidade de a justiça eleitoral declarar perda de mandato por “infidelidade”. Prevê, sim, a perda do mandato quando se der a perda dos direitos políticos (art. 55, IV, combinado com o art. 15, I-V). Assim, por exemplo, um parlamentar que for condenado por improbidade administrativa (art. 15, V, da CF) terá suspensos seus direitos políticos e, conseqüentemente, perderá o mandato que exerça. Isso, todavia, está no capítulo IV do título II da CF. Intrigante é que a fidelidade partidária surge apenas no capítulo seguinte (V), que trata dos partidos políticos.

E daí? Simples. O constituinte não concebeu a fidelidade como instituto atrelado aos direitos políticos, os quais são indisponíveis, públicos em seu matiz ontológico. Concebeu-a como elemento da convivência de correligionários, integrantes de um mesmo partido político que, pasmem, é pessoa jurídica de direito privado. Numa palavra, o STF pôs o bedelho em assunto que não diz respeito aos fundamentos da república, mas tão-somente à organização de uma típica associação. A patacoada foi tamanha que o STF decidiu pela perda do mandato, ali onde houvesse infidelidade, sob a desculpa de que estaríamos sob a égide de eleição proporcional, em que a massa corpórea da legenda superaria a do candidato propriamente dito. Aí, veio o TSE, julgando a consulta 1.407, para dizer que os eleitos pelo sistema majoritário também estão sujeitos a perda do mandato se forem infiéis. E agora? Qual a principiologia?

Melhor: o TSE, com a resolução 22.610 (que, pragmaticamente, funciona como lei) disciplinou o processo (atentem para a palavra: processo) de perda do mandato, dando legitimidade até ao MP. Rasguem a CF! Nela, é dito que compete privativamente à União legislar sobre direito processual. Mais grave: atribuição e competência só podem ser estabelecidas em atos normativos oriundos do congresso nacional. Toda vez que a legislação eleitoral quis que o MP atuasse, ela assim o disse textualmente (art. 3º da LC 64/90). Mas atribuir legitimidade por resolução?! E que interesse processual teria o MP em resguardar um instituto que diz respeito a pessoa jurídica de direito privado? E se o partido não se interessar? O MP seria substituto processual de uma associação? E que justificativa se daria para a perda do mandato de prefeitos, governadores, senadores e até do presidente? O voto foi dado a eles ou ao partido?

Por essas e outras é que um advogado pode afirmar destemidamente: o STF às vezes julga no escuro. O mesmo escuro que aureolava a Colônia Juliano Moreira, em que Artur Bispo do Rosário amargamente viveu. Um homem sem bússola, que acreditava ser Deus, que não permitia que alguém se deliciasse com sua arte se não conseguisse ver o “azul” de sua áurea. A ele chamaram “o senhor do labirinto”, patente que, de um lado, apontava para quem projetava mundos atravancados e que, de outro, indicava o dono de um universo insólito, que só ele captava. O STF está assim. Entremeado de idéias que só ele equaciona, arquiteto de teias que só ele consegue alinhavar. O advogado que questionar o STF poderá até ser tido como insipiente, de uma insipiência que o tornaria tão louco quanto o senhor do labirinto. Mas não lhe terá faltado coragem para dizer, como José Régio (em Cântico Negro): “não vou por aí”.

- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, domingo, segunda e terça-feira, 20 a 22 de abril de 2008, Caderno B, p. 11.

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