Aracaju/Se,

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Lisístrata e a Greve do Sexo

Artigos Pessoais

Lisístrata, a greve do sexo
e a relação do Estado com seus servidores
no liberalismo de esquerda



Quando se fala em greve, a moçada que aprecia História procura logo estabelecer uma digressão sobre a França. Afinal, foi lá que tudo principiou. Limiar do século XVIII. Às margens do Sena: place de grève (praça de greve). A palavra francesa grève fazia alusão ao solo rico em cascalho que beirava o rio. Ali, vários desempregados e trabalhadores rebeldes reuniam-se com o propósito de estabelecer discussões voltadas ao enfrentamento das condições de miserabilidade em que estavam vivendo. No país que tem sua bandeira demarcada pelas cores da liberdade, da igualdade e da fraternidade, o que rendeu, inclusive, uma festejada trilogia cinematográfica (obra do gênio de Krzystof Kieslowski), greves não podiam ser incendiadas. Ironicamente, até a etimologia foi buscar o vocábulo na doçura do francês. Mas no Brasil, principalmente nas entranhas da ditadura, greve era sinônimo de “queremos levar porrada”.



Como se vê, nada de liberdade azul, igualdade branca ou fraternidade vermelha. Aqui, a pancadaria era preta mesmo. Até Lula caiu no pau. Talvez essa seja a melhor cor para associar à greve e à sua resistência. Que o diga Aristófanes. O trágico grego, através da peça “Lisístrata, ou a greve do sexo”, usa a abstinência sexual como fator determinante do fim de uma guerra. E quem agüenta ficar muito tempo sem sexo? A coisa viaja à estratosfera e acaba por ganhar a tonalidade da escuridão. Mas também, burrice tem que ser tratada com brutalidade. Enquanto a grande ameaça para as cidades-estado gregas (Atenas e Esparta) estampava a bandeira da Medo-Pérsia, os patetas pelejavam entre si. Foi necessário que uma ateniense, de nome Lisístrata, conclamasse todas as mulheres gregas a fazerem uma greve de sexo, forçando seus maridos a suspenderem a batalha. Deu certo. A concupiscência também é azul.

Engraçado é que, embora o tradutor use a palavra greve no nome da peça de Aristófanes, este certamente não a concebia com o valor semântico que lhe é dado contemporaneamente, até porque ela só foi cunhada mais de dois mil anos depois do episódio que envolveu Lisístrata. Mas não é só. Malgrado a excelência da erudição grega, esse povo não teria condições de imaginar o que, exatamente, consubstanciaria uma greve. Presepada de burgueses anticapitalistas. Tudo bem que o capitalismo até traduza um Estado de injustiça. Tudo bem que o socialismo puro também signifique um Estado de não-liberdade. Todavia, não há espaço para greves nos tempos atuais. Nossos teóricos econômicos precisavam se debruçar sobre os estudos de Friedrich Hayek, cujo trabalho inspirou, por exemplo, Margaret Thatcher. A resposta que ela deu à greve dos mineiros de 1984 sinaliza bem o que aprendeu: pau na moleira.

Com efeito, greve é coisa de Estado socialista. Por quê? Porque, nesse tipo de Estado, o governo absorve todas as responsabilidades. Acontece que o socialismo morreu. Morreu lentamente, é verdade. Mas morreu. Sua decomposição foi dolorosa, diga-se de passagem. Começou ali, encarando o liberalismo clássico. É difícil saber quem trouxe mais catástrofes. É certo que o liberalismo redundou no fim do absolutismo, pugnando por um governo eminentemente constitucionalista, pelas liberdades civis e, essencialmente, pela não intromissão do Estado na economia. Bonito! Não fosse a manutenção do voto censitário. Nessa, os pobres dançaram. OK, o liberalismo, com forte inspiração Kantiana, facilitou o advento da “maioridade da razão humana”. Maravilha: fim da tortura, fim do arbítrio, fim dos privilégios. Mas agravamento da pobreza. Quem era pobre ficou mais pobre. Resultado? Revolução.

Stuart Mill até que tentou defender a “organização das massas proletárias”, dando mais robustez à liberdade de expressão. Mas isso só numa democracia. Democracia com voto censitário? Aí, teve que vir à tona o liberalismo social. Fruto da filosofia de Thomas Green, Leonard Hobhouse e John Hobson, o liberalismo social dosava essa conversa de Estado minimalista e admitia uma pequena intervenção na economia para evitar o agravamento das distorções. A quebra da bolsa de Nova York em 1929 apressou a implementação dessa novel teoria. Só para que se tenha uma idéia do fracasso do liberalismo clássico, vale a pena olhar para trás, a fim de ver seus mais portentosos resultados: o nacional-socialismo alemão e o totalitarismo italiano. Daí, a adoção do liberalismo social pela Inglaterra e pelos EUA, onde se deu cabo a uma nova política estatal, que entrou para a História como welfare state: Estado do bem-estar social.

O liberalismo social andou tomando umas chibatadas da turma do neoliberalismo, em especial de Hayek. Não havia razoabilidade nisso. Margaret Thatcher, por exemplo, se arrebentou quando, no âmbito da tributação, achou por bem aplicar a regressividade. Coisa de louco. Cobrar mais de quem ganha menos e menos de quem ganha mais? Ponto-de-vista neoliberal. Caiu. Outro conservador a sucedeu: John Major. Ficou sete anos no poder. Finalmente, os trabalhistas tomaram a batuta em Londres com Tony Blair, dando início a uma política inovadora: o liberalismo de esquerda. Esculhambam Blair, mas foi ele quem propalou a principiologia do “trabalho para os que podem trabalhar; assistência para os que não podem trabalhar”. Blair defendeu o fim de muralhas alfandegárias e de tarifação para produtos agrícolas, algo desejado por nações em desenvolvimento como Argentina, Brasil, Índia etc.

Mas Blair errou. Onde? Na guerra. A mesma guerra que quase arrebenta com atenienses e espartanos. A mesma guerra que sempre faz grevistas se arrependerem das greves que fazem. O Estado atual, onde vigora a bandeira do liberalismo de esquerda, cujos maiores expoentes são Bobbio e Rawls, não pode acatar pressão de um pequeno grupo que quer desestabilizar uma máquina que existe para todos, e não para poucos, os quais, aliás, deveriam ser menos ainda. O Estado do terceiro milênio não pode abrir mão da tecnocracia e da burocracia. O Estado do terceiro milênio deve voltar a atenção apenas e tão-somente para funções estatais típicas: segurança, jurisdição e defesa nacional. Isso implicará menos gastos com a lubrificação das engrenagens públicas, facilitando a viabilização de políticas sociais. Em suma, o Estado do terceiro milênio, como quer Bobbio, é dado à policracia: governo da sociedade civil.

Tal reflexão deveria ser assimilada por quem não compreende o real papel do Estado. O Estado não é deles. Tampouco é para eles. É para todos. E esse “para todos” só se obtém mediante mecanismos de pacificação, a exemplo do diálogo, jamais da greve, que é guerra, na acepção ontológica mais tribal. A cátedra de Carlo Rosseli, pensador do liberalismo de esquerda, admoesta que: “é possível pensar que a passagem de uma para outra sociedade aconteça mediante um processo gradual e pacífico: mediante uma passagem que, salvando as vantagens já garantidas de uma, as reforce progressivamente através das vantagens da outra”. Veja-se que o matiz é o da paz. Grevistas, porém, rufam os tambores de uma beligerância antropofágica. Perderão porque não dialogam. Digladiam. Grevistas deveriam ler Lisístrata, ver o azul do mar, pensar menos na escuridão da guerra e mais na brancura do amar.

* Artigo publicado no Jornal da Cidade, Aracaju, edição de domingo e segunda-feira, 27 e 28 de abril de 2008, Caderno B, p. 11.




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