Aracaju/Se,

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Venta Romba e o Governo da Meritocracia

Artigo Pessoal

Venta-Romba,
o julgamento das prostitutas
e o governo da meritocracia
Clóvis Barbosa

Graciliano Ramos
Dois juízes: o pai de Graciliano Ramos e o filho de Davi. Dois julgamentos: o de um esmoler e o de duas prostitutas. Julgamento do esmoler: Venta-Romba. Com o coronelismo, não era adequado que homens sábios ocupassem o cargo de magistrado. Não havia certame, mas escolha infame. Não havia excelência; havia subserviência. Quem melhor servisse ao coronel receberia como recompensa o emprego de juiz. Graciliano Ramos reconheceu que seu pai “possuía conhecimentos gerais muito precários”. De qualquer forma, acolheu a nomeação “sem nenhum escrúpulo”. Convinha ao sistema governamental da época ter gente desse tipo frente à administração da justiça. Convinha a gente desse tipo agachar-se perante os donos do poder, aceitando o status dado a quem prolatava sentenças em troca da obediência paraplégica ao chefe político local, o qual, no fim de tudo, ditaria a redação dos casos relevantes.

Mas existiam casos irrelevantes. Venta-Romba protagonizou um deles. Venta-Romba era pedinte. Toda sexta-feira, ele ia, de casa em casa, humilhar-se em busca de alguns centavos. Conta Graciliano que, em dada oportunidade, Venta-Romba chamou à porta de sua casa, mas não foi ouvido. Assim, entrou. Entrou sem obter a necessária licença. Isso enfureceu a mãe do escritor. Mulher rude e inflexível, determinou ao moleque José que fosse avisar o marido, juiz da cidade, acerca do ilícito praticado pelo mendigo. Não deu outra. Vieram o juiz e um gendarme. Apesar de não letrado, o pai de Graciliano de pronto percebeu tratar-se de um exagero da esposa. Normalmente, esposas de autoridades concebem-se como autoridades maiores do que os próprios maridos. Ainda assim, e diante da mobilização, que desviara a atenção dos populares, o juiz não podia desmoralizar-se: um dia de cadeia para Venta-Romba.

Salomão
Quem não tem mérito para exercer uma função, termina preenchendo o vazio deixado pela serenidade com o enchimento do puro arbítrio. O mestre alagoano, passados vários anos, mas ainda marcado pela desmesura do episódio, declarou que ele “deve ter contribuído para a desconfiança que a autoridade” inspirava em si. É verdade. Autoridade sem mérito não merece confiança mesmo. Por outro lado, a autoridade que, antes de sê-lo, faz por onde merecer o cargo, inspira confiabilidade. Exemplo? Salomão, filho de Davi. Ao assumir o mister de rei, o monarca fez uma oração, através da qual pedia sabedoria para poder guiar os difíceis passos do povo judeu. A divindade, satisfeita com a procura do mérito pelo jovem governante, não só lhe deu sapiência, como glória, longevidade e riquezas. Mas a sabedoria de Salomão precisava ser testada. E foi, num capítulo que ficou consagrado no bojo da literatura hebraica.

Trata-se do julgamento das duas prostitutas. A narrativa, concluída no séc. VI a.C., nasceu pelas mãos do profeta Jeremias, escritor do primeiro livro dos reis. Os fatos propriamente ditos, no entanto, deram-se ali uns mil anos antes da era comum. Jeremias discorre sobre o seguinte acontecimento: duas prostitutas moravam juntas. Grávidas, ambas tiveram seus bebês dentro de um interregno de três dias. Sucede que, uma delas, tomada por um sono profundo, deitou-se sobre o filho, asfixiando-o e matando-o. Percebendo o que tinha feito, sorrateiramente trocou o seu filho, morto, pelo da outra, que dormia ao lado da mãe. Esta, ao amanhecer, constatou a troca e levou o problema a Salomão. Todavia, a primeira jurava que o bebê vivo era seu. Ante o impasse, Salomão determinou que um soldado viesse e dividisse a criança no meio, após o que daria metade para cada uma das partes. Resolver-se-ia o impasse.

Nesse ínterim, porém, a mãe verdadeira gritou: “Não! Não matem a criança! Dêem-na para a outra mulher”. A adversária, no entanto, redargüiu: “De forma alguma. Dividam a criança no meio”. Ainda bem que o juiz não era o pai de Graciliano Ramos, um medíocre. É que os medíocres, malgrado aquilatem as asneiras que fazem, normalmente não voltam atrás, por questão de arrogância ou vaidade. Mantêm o erro para não demonstrar fraqueza. Salomão, não. O mérito que o fez chegar ao trono jamais lhe permitiria deixar de enxergar que a verdadeira mãe preferiria perder seu filho a vê-lo morto. Por conseguinte, Salomão ordenou que o neném fosse entregue àquela mulher que pediu para que ele não fosse dividido em dois. E o povo descobriu o quão tranqüilizador é ser governado por um rei sábio, que chegou onde chegou, não de forma biônica, mas legítima, meritória.

Eis o triunfo da meritocracia. Criada em 1958 pelo sociólogo britânico Michael Young, a palavra dá título a um dos seus mais importantes textos: rise of the meritocracy. A meritocracia seria, pois, um sistema de governo que seleciona os servidores em geral pela competência, ao invés de pelo apadrinhamento. O chefe do executivo, por exemplo, será meritoriamente empossado se consagrado nas urnas pelo voto popular. Diferentemente, será coronelisticamente empossado se chegar ao cargo mediante a imposição das armas, o que faria dele um líder biônico, tirano e zambeta. Biônico porque galgou o poder mecanicamente, pela inflição fria da máquina ditatorial, sem a unção popular, conferida junto à pia batismal do voto; tirano porque fruto de um modelo avesso à democracia, o qual despreza o desejo das massas; zambeta porque cambaleia para lá e para cá, conforme seja a direção das artérias do coronel.

A Inglaterra mudou o método educacional com a meritocracia. Nos EUA, Randall Collins, professor de Sociologia na Pensilvânia, cunhou o vocábulo “credencialismo” para designar a situação de quem estaria credenciado para desempenhar cargos, enfatizando mais a capacitação do indivíduo do que suas origens aristocráticas ou tradicionais. Por aqui, entretanto, há quem ache que vetustos chefes biônicos teriam méritos para retornar ao poder, embora tenham recebido julgamentos nada meritórios nas urnas, instrumentos de coroação no regime popular que dão o contorno de uma república. É essa alcatéia que aplaude juízes como o pai de Graciliano e que vibra com a prisão de um Venta-Romba. Como preconizou Mel Brooks, seria bom se essas pessoas atentassem para o fato de que, numa nação que não abraça a meritocracia, “o que os governantes não fazem com suas esposas, acabam fazendo com o país”.

Mel Brooks
 (*) - Publicado no Jornal da Cidade, edição de 04.05.2008, e no site nenoticias.com.br.

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