Aracaju/Se,

sexta-feira, 16 de julho de 2010

O Cinturão de Graciliano Ramos

Artigo Pessoal

A OAB, o TCU e o
cinturão de Graciliano Ramos

Clóvis Barbosa (*)

Querem espinafrar a OAB. Querem dispersar os advogados. Não há registros na história de uma profissão que tenha incomodado tanto. Nem a policia desagrada como a advocacia. Policiais só chateiam bandidos. Advogados, não. Esses aborrecem todas as espécies que possam se contrapor à defesa de suas teses. Sucede que a arma do advogado está na palavra. Sabedor disso, o psicopata do Napoleão Bonaparte chegou a declarar que mandaria cortar a língua do advogado que a usasse contra o seu império. A sorte do déspota francês é que, naquela época, não existia algo que se igualasse à OAB. Mas se houvesse, ele, certamente, mandaria destruir a entidade. Em tempos de democracia, contudo, essa conversa de destruir está meio démodé. Só a conversa. No íntimo, a destruição ainda é uma gana da humanidade. “Destruir para vencer” é o lema de alguns. Mas por que a OAB como foco da destruição?

Ora, a tirania não assimila que a OAB seja o que é: combativa e independente. Com efeito, a combatividade vem da própria ossatura da Ordem. Como o próprio nome já indica, ela foi instituída para pôr “ordem” no sistema. A estrutura semântica da expressão “Ordem dos Advogados do Brasil” é, no mínimo, intrigante: “ordem ‘dos’ advogados”. Há duas interpretações. A primeira está ali onde se entende que a entidade, ou seja, a Ordem, pertence aos advogados. Assim, a preposição “dos” acenaria para um cenário de posse. Por outro lado, a segunda interpretação se alicerça na idéia de que a ordem, a organização da advocacia brasileira, seria levada por ela à sociedade. Numa palavra, os advogados do Brasil haveriam de impor ordem aos demais estamentos sociais. Essa parece ser a melhor exegese, até porque acha supedâneo na linguagem que a Constituição Federal emprega para tratar a advocacia.

Por exemplo: um concurso para a magistratura, seja ela estadual ou federal, só vale se a Ordem o acompanhar. Concursos para delegados de polícia de carreira exigem a participa-ção efetiva da OAB, sob pena de nulidade do certame. Um quinto das vagas dos tribunais estaduais e federais é composto, em sua metade, por juristas elencados pela OAB. A OAB tem a prerrogativa de escalar ora cinco, ora seis advogados para a composição do Superior Tribunal de Justiça, o STJ, o que equivale à metade de um terço das vagas desse sodalício, considerada, ademais, a alternância que deve haver entre um maior número de advogados e um maior número de ministros egressos do Ministério Público. A OAB tem legitimidade universal para propor ações diretas de inconstitucionalidade em face da Constituição Federal, independentemente da origem do ato normativo questionado.

Em síntese, a OAB a todos fiscaliza. Ela traduz um verdadeiro big brother, na linguagem de George Orwell: um olho que tudo vê, uma mão que tudo controla. Mas, em matéria de controle, a OAB não está só. O TCU também tem sua gênese carimbada pela alma do controle. Na verdade, o tribunal de contas da união auxilia o congresso nacional no que toca à fiscalização financeira dos órgãos públicos em sua totalidade. Entretanto, o art. 70 da CF, assim como o seu parágrafo único, estabelece que serão fiscalizadas as entidades da administração direta ou indireta do Estado, na acepção máxima: União, Estados, Municípios e Distrito Federal. Ademais, também deve ser fiscalizada a entidade que use dinheiro público. Pois bem, a OAB integra a administração direta ou indireta? A OAB usa dinheiro público? A resposta é “não” para ambas as indagações. E isso por uma razão ímpar: a OAB é ímpar.

A OAB é uma autarquia especial. Especial exatamente porque não existe outra autarquia que se compare a ela. A rigor, o Estatuto da Advocacia aduz, no art. 44, § 1º, que “a OAB não mantém com órgãos da administração pública qualquer vínculo funcional e hierárquico”, coisa que se dá com as demais autarquias. Em agosto de 2004, o Superior Tribunal de Justiça, através de voto do Ministro Castro Meira, decidiu que, “embora definida como autarquia profissional de regime especial, ou sui generis, a OAB não se confunde com as demais corporações incumbidas do exercício profissional”, arrematando que “não se encontra a entidade subordinada à fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, realizada pelo Tribunal de Contas da União”. Por que? Fácil, porque a OAB, consoante o próprio STJ, não recebe dinheiro público, já que “as contribuições pagas pelos filiados à Ordem não têm natureza tributária”.

Em junho de 2006, o pleno do STF, ao julgar a ADIn 3026-DF, preconizou que “não procede a alegação de que a OAB se sujeita aos ditames impostos à administração pública direta e indireta. A OAB não é uma entidade da administração indireta da União. A Ordem é um serviço público independente, categoria impar no elenco das personalidades jurídicas existentes no direito brasileiro. Por não consubstanciar uma entidade da administração indireta, a OAB não está sujeita a controle da administração, nem a qualquer das suas partes está vinculada. A OAB ocupa-se de atividades atinentes aos advogados, que exercem função constitucionalmente privilegiada, na medida em que são indispensáveis à administração da justiça (art. 133 da CF). É entidade cuja finalidade é afeita a atribuições, interesses e seleção de advogados. Não há ordem de relação ou dependência entre a OAB e qualquer órgão público”.

Como, então, querer impor à OAB uma prestação de contas ao Tribunal de Contas da União nos moldes daquilo que é feito pela administração pública em geral? Estranho! Mas algumas noções de justiça são estranhas mesmo. Isso lembra um conto “um cinturão”, que compõe o livro “infância”, publicado por Graciliano Ramos lá pelos idos de 1945, quando acabava a segunda guerra mundial. Nele, o mestre alagoano narra que quando tinha uns quatro anos brincava em um canto da casa, enquanto seu pai dormia na rede. De repente, o velho rabugento acordou-se. O rosto amuado; o espírito, indisposto. Onde estaria o seu cinturão? Nada de achá-lo. Graciliano ia ter que dar conta da desgraça que o pai buscava. Não deu. Caiu no pau. Uma surra da qual nunca se esqueceu. Não pela surra em si, mas pela cobrança indevida. Pela injustiça: o pai houvera esquecido o cinturão na rede em que cochilava.

Após encontrar o que queria, o verdugo desapareceu. Sequer esboçou um pedido de desculpas por ter cobrado algo de quem nada devia. Por ter fustigado alguém que não merecia reprimenda. Graciliano diz que, miseravelmente, esse foi o primeiro contato que teve com a justiça. A OAB, diferentemente, já teve vários contatos com a justiça. Engraçado que, agora, querem apresentá-la a uma nova espécie de justiça. Uma que cobra de quem não deve. Uma que, alem de ter os olhos vendados, anda com um cinturão a açoitar o primeiro que “vê”.


• Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 6 e 7 de abril de 2008, Caderno B, pág. 9. 

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