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sexta-feira, 14 de maio de 2010

A fidelidade partidária e os astronautas de yaveh

Podem os deuses errar? O jornalista espanhol J. J. Benítez (1946) acredita que sim. Consagrado pela crítica por conta do best-seller “Operação Cavalo de Tróia”, onde explana dados insólitos acerca da biografia do Messias, Benítez advoga, com pretensão de dogma, a falibilidade divina em outro texto. Trata-se do menos denso “Os Astronautas de Yaveh”. Ali, o autor, retomando sutilmente as teses escatológicas do suíço Erich Von Däniken, esboça o ponto-de-vista de acordo com o qual o genocídio egípcio, dado por ocasião da décima praga, foi, na verdade, um equívoco divino. Com efeito, todos sabem que a última praga consistiu na morte dos primogênitos que estivessem dormindo em casas não marcadas pelo sangue de um cordeiro imolado. Benítez não aceita que essa tenha sido a intenção da divindade. Segundo ele, tudo não passou de um desacerto operacional. De qualquer forma, algo irreparável, pelo menos consoante a leitura das vítimas.
                
Alguns erros, inegavelmente, apontam para cenários que não contemplam as cores do arrependimento. Enquanto os erros estão no plano teórico, todavia, um elementar delete mostra-se hábil a dissipar o imbróglio. Mas no campo empírico, um tiro mal executado certamente alvejará o refém. A propósito disso, a política e o processo têm, historicamente, o mau vezo de criar reféns. Às vezes, o sistema apodera-se das pessoas de tal modo, que elas não conseguem desvencilhar-se de suas teias. A fidelidade partidária, por exemplo, produto de uma idiossincrasia eleitoral primeiro-mundista, terminou por engaiolar alguns políticos acostumados a praticar salto a distância. Agora, neste partido; amanhã, naquele; depois de amanhã, em nenhum.

Sucede que o STF achou por bem acompanhar Moisés. Aspergiu sangue de cordeiro tão-somente na porta daqueles que foram fiéis às suas siglas, guilhotinando os demais. Mas daí, pode advir um despautério. E, apenas para não esquecer, os deuses erram. A rigor, os guardiães da constituição, lançando mão do linguajar de Carl Schmitt, não podiam olvidar a interpretação realista do direito, principalmente sob a perspectiva empirista de Alf Ross. Direito é Justiça. E Justiça é Cultura. Amadurecimento cultural, no entanto, demanda tempo. Sucede que o tempo é uma grandeza física, não jurídica, com o adendo de que natureza não deu ao Direito o direito de alterar concepções anti-normativas. O Direito tão-somente cria e implanta idéias; jamais, fenômenos naturais. O Direito não faz chover, não semeia a aurora ou o crepúsculo. Também não é capaz de pôr no coração dos homens o apego à fidelidade. Pode, apenas, disseminar o diapasão da fidelidade em suas cabeças. Tal mudança, porém, exigirá tempo. E o STF não deu o tempo de que, efetivamente, os políticos precisavam. O guardião da constituição quis atuar na seara da Física; não do Direito. Processualmente, isso foi um erro. Por quê?
                                          
Ora, vislumbre-se a questão segundo uma óptica histórica. Em 1988, quando a CF foi promulgada, o § 1º do art. 17 usava a expressão “fidelidade e disciplina partidárias”. Com o advento da Emenda 52, a dicção inverteu. Agora, a expressão é “disciplina e fidelidade partidária”. Parece bobagem. Mas não é. Neste momento, a disciplina é mais relevante do que a fidelidade. Afinal de contas, foi posta com a nuança da primazia, vindo primeiro. A fidelidade vem logo após. E daí? Elementar. Não é razoável acreditar nisso, mas tudo leva a crer que o STF desprezou o art. 6º, § 1º, da Lei nº 9.504/97, ali onde ela assevera que a coligação funcionará como um só partido. Enxergue-se, pois, a disciplina antes da fidelidade. Empregue-se, para tanto, um caso doméstico: Jackson Barreto. Jackson fez parte de uma coligação onde estavam PTB e PMDB. Jackson, depois de ser eleito, saiu daquela legenda, migrando para esta última. Manteve-se a disciplina partidária. A coligação é um só partido. Manteve-se, aliás, a própria fidelidade. Jackson não traiu a coligação, que, indubitavelmente, era o seu partido.
                                
Ademais, no âmbito do processo, uma ação só pode ser agitada quando estão presentes os institutos do interesse, da legitimidade e da possibilidade jurídica do pedido (art. 267, VI, do CPC). Quem teria legitimidade para, eventualmente, avocar o mandato de Jackson, já que o STF propalou que o mandato pertence ao partido, e não ao mandatário? Ora, a coligação. Mas acontece que Jackson ainda está na coligação. Assim, faltar-lhe-ia interesse, pois o interesse está dividido em interesse-adequação e interesse-necessidade. Que necessidade, por conseguinte, teria a coligação para digladiar, visando arrancar o mandato que Jackson estampa, se ele será mantido na própria coligação? O STF cogitou isso? Conseqüentemente, é lúcido conceber que a porta de Jackson está guarnecida com o sangue do cordeiro. Os Astronautas de Yaveh não o podem decapitar. E se tentarem, perpetrarão um despropósito, que poderá ser deletado.
                                        
Em suma, o STF deixou passar a oportunidade de laborar no território cultural, enfatizando mais a repressão de possíveis infratores da fidelidade partidária do que a formação de uma linha pedagógica. Mesmo porque, hoje, vive-se o império da disciplina. A fidelidade ganhou o condão de província. E disciplina invoca tempo. Aquele mesmo tempo que o STF outorgou para a problemática da verticalização. Dois pesos e duas medidas em face da mesma Emenda 52. Coisa de quem, aqui e acolá, vê o planeta lá de cima. Coisa de deuses. Coisa de astronauta.

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