Aracaju/Se,

sábado, 15 de maio de 2010

A Alegoria da Caverna e a Navalha de Ockham

             Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara. Saramago não poderia ter sido mais feliz na escolha da epígrafe para o seu livro “Ensaio Sobre a Cegueira”, obra em que o escritor lusitano disseca uma narrativa emblemática. Saramago projeta o leitor para uma comunidade em que os habitantes vão, paulatinamente, perdendo a visão. Disse bem o crítico Arthur Nestrovski, o texto é uma viagem ao inferno. No inferno, todavia, as personagens descobrem-se. A propósito disso, dois pensamentos, esboçados por integrantes da história, devem receber especial realce. Em um deles, é ponderado: Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos. Outra personagem vem à tona com uma tirada platônica. Para ela, é necessário assumir a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam.
                            

            Com efeito, a epígrafe do livro remonta à Alegoria da Caverna, pintada ali no Livro VII da República. Seu conteúdo é bastante fácil de captar. Platão, desenvolvendo teses de nuança epistemológica, expõe um diálogo consubstanciado na seguinte parábola: imagine-se um certo número de indivíduos, dentro de uma caverna escura, amarrados de tal forma, que lhes é simplesmente impossível olhar para a entrada. Eles, imobilizados, conseguem tão-somente lançar os olhos para o fundo da caverna, em cuja porta foi erguido um muro. Atrás desse muro, ademais, há um tocha fumegante. Quando os homens libertos passam pelas chamas, projetam, para o fundo da caverna, suas sombras. Conseqüentemente, os prisioneiros da escuridão crêem, efetivamente, que as sombras traduzem o mundo. Um deles, porém, mais questionador do que os seus pares, consegue, de uma forma ou de outra, romper os grilhões e sair da caverna, descobrindo a realidade. Numa palavra, seus olhos, no passado, experimentavam um universo virtual. Agora, não. Ele passa a ter pleno contato com a verdade.
              
            Nesse instante, surge a citada responsabilidade: ter olhos quando os outros os perderam. Em síntese, no momento em que aquele ex-prisioneiro deixou de ter apenas a capacidade de olhar, passando a poder ver, mister se faz, também, que ele “repare”, ou seja, observe, perscrute, questione. Percebe-se, pois, que reparar, isto é, observar, perscrutar e questionar dependem de um elemento imprescindível: saber qual é a verdade. Assim, quem julga sem os componentes da verdade, julga mal. Aliás, não julga. Termina por produzir um falso julgamento, um julgamento que não mantém consonância com o universo compacto das idéias. Nessa esteira, o Direito não poderia deixar de conceber tal apanhado filosófico. Assim foi que, na Alemanha, o jusfilósofo Zaccharie edificou o postulado da existência dos atos jurídicos. Para ele, os atos jurídicos só existiriam quando estivessem presentes, concomitantemente, agente capaz, objeto lícito e forma estabelecida ou, pelo menos, não proibida pela ordem normativa. É a dicção do atual art. 104 do Código Civil brasileiro.

             Essa dogmática vale, analogamente, para os atos administrativos. Por exemplo, quem se vê aprovado em um concurso público, a fim de que possa ser nomeado, precisa provar que é capaz. Mas como? Elementar. Basta que o candidato comprove, por exemplo, sua reputação ilibada, através de certidões negativas, obtidas junto às várias justiças (estadual, federal, eleitoral). O ordenamento faz exigências similares para que alguém venha a ocupar cargos como os de desembargador e conselheiro do Tribunal de Contas (art. 71, II, da Constituição do Estado de Sergipe). O que aconteceria, porém, se fosse escolhido como conselheiro do Tribunal de Contas alguém que não preenchesse o requisito da idoneidade moral? Alguém que, por exemplo, estivesse, à época da escolha, sendo investigado pela Polícia Federal pela prática de crimes contra a Administração Pública? Alguém que, após a escolha, tivesse decretada sua prisão preventiva por uma Ministra do STJ, em face dos supramencionados ilícitos, todos levados a cabo sem que aqueles que o escolheram pudessem aferir tal dado relevante? Alguém que, certamente, não seria escolhido se quem o escolheu soubesse que ele estava envolvido com tudo que, agora, o descredencia, ou melhor, que sempre o descredenciou?
             
            É o caso de Flávio Conceição. A digressão, no entanto, não é pessoal. Nada contra a pessoa íntima de Flávio. A questão é jurídica. Ela envolve o homem público que é Flávio: inidôneo, em tese, para o cargo, por falta de capacidade jurídica (leia-se reputação ilibada). A escolha de Flávio foi um dramático “ensaio sobre a cegueira”. Quem o escolheu, fê-lo porque não viu o mundo do lado de fora da caverna. Viu a sombra de Flávio. Mas a Polícia Federal trouxe a luz. E, com ela, o mundo real. Descobriu-se que, dentro de Flávio, há uma coisa que não tem nome, e essa coisa é o que ele é: inapto para o exercício do cargo de conselheiro do Tribunal de Contas. Em suma, o ato mediante o qual se deu sua escolha, pela falta de agente capaz, simplesmente não existe. É nulo. Qual a solução para o impasse, por conseguinte? Fácil. Não é preciso ir muito longe. Basta viajar para o século XIV. Ali, viveu o filósofo William de Ockham, o qual idealizou a seguinte teoria: Quando existirem inúmeras explicações para um mesmo fenômeno, opte-se pela mais simples. Tal máxima entrou para a His-tória como “A Navalha de Ockham”, muito usada na matemática, a exemplo da “Complexidade de Kolmogorov”. Parece ininteligível. Mas não é. Quem aprecia algoritmo vai compreender: ao invés de usar 1.000.000.000, use-se 109. É a lógica da simplificação. Daí, hoje, em vez de grandes computadores, utilizarem-se notebooks, laptops, palmtops etc.

            No Direito, embora não haja algoritmo, existe lógica. Por isso, os jurisconsultos, com base no reconhecimento de atos nulos, diagramaram a teoria da “relativização da coisa julgada”. Nos primórdios, postulava-se que, toda vez que não coubesse mais recurso de uma decisão, ter-se-ia a coisa julgada. Pronto. Ainda que injusto, ou até mesmo errado o comando jurisdicional, nada mais poderia ser feito. Isso acabou. Por exemplo, em agosto deste ano, o STJ, ratificando uma centena de decisões já prolatadas nesse teor, pontificou, em voto da Ministra Denise Arruda (Recurso Especial 622.405/SP): “Segundo a teoria da relativização da coisa julgada, haverá situações em que a própria sentença, por conter vícios insanáveis, será considerada inexistente juridicamente”. Ora, se uma sentença pode ser tida como “inexistente”, quanto mais o ato administrativo de escolha de um conselheiro do Tribunal de Contas.
                                        

            Pouco importa a pessoa envolvida no processo. O que importa é que a Assembléia Legislativa, assim como as personagens da Alegoria da Caverna, não viu o indivíduo em sua clareza. Viu espectros. A cegueira, não por culpa dos deputados, mas por culpa do candidato, dominou o parlamento. Agora que a Polícia Federal e o STJ livraram os olhos de todos, é necessário corrigir o imbróglio, até mesmo porque, como bem preconizou Saramago, quem pode ver, repara. E as coisas podem ser reparadas da maneira mais simples. Basta declarar nula a escolha de Flávio, já que ele não preenchia um dos requisitos que dele fariam “agente capaz”. William de Ockham que o diga. É só fazer valer a navalha.


- (Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de 07 de novembro de 2007, quarta-feira, Caderno B, página 6. Republicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de 2 e 3 de agosto de 2009, domingo e segunda-feira. Caderno B, página 8).




Um comentário:

  1. apreciar o blog do senhor é tão gratificante e prazeroso, que não sobra tanto tempo para comentarios. muito inteligente, parabéns.

    te desejo: saúde e paz.

    José Orlando de Frades

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