Aracaju/Se,

sábado, 22 de maio de 2010

Os Portões da OAB.

Artigos Pessoais

Os portões da OAB, a escadaria de Odessa
e a actio libera in causa


Cinco anos distanciam o “Encouraçado Potemkin” da OAB. Gravada em 1925, a obra de Eisenstein retrata a rebelião de marinheiros russos aos quais ofereceu-se comida estragada. Tudo se deu em 1905, quando um cachaceiro governava a Rússia: o czar Nicolau II. Atracado no Mar Negro, mais precisamente na Baía do Tendra, o encouraçado protagonizou a gênese de uma série de rebeliões que resultaria na Revolução Russa de 17. Vinculada à revolta dos militares soviéticos, estava a insatisfação das massas, que, também em 1905, encaminharam-se até o Palácio de Inverno de Nicolau, sob o comando de um sacerdote (o padre Gapone), no sentido de entregar ao monarca um como que de manifesto, reclamando a observância de direitos civis, a exemplo da jornada de trabalho, sufrágio universal, salário mínimo etc. A passeata contou com algo em torno de duzentas mil pessoas. Termo da passeata: mais de noventa mortos, entre homens, mulheres e crianças. A lente de Eisenstein fotografou o massacre dos populares, que se eternizou como “domingo sangrento”, dando notada ênfase à cena da “escadaria de Odessa”, tocante principalmente pelo fuzilamento de duas mães, uma das quais conduzia um carrinho de bebê. Em “Os Intocáveis” (1987), Brian DePalma tentou, sem êxito, imitar Eisenstein, na cena da mãe que larga o carrinho com o neném. De qualquer maneira, entre ambas as obras cinematográficas imperam duas tênues similitudes: em primeiro lugar, os intocáveis combatiam o crime; o povo de Odessa, o totalitarismo, que não deixa de ser um ilícito. Em segundo lugar, os intocáveis enfrentavam Al Capone, mafioso que vendia cachaça durante a lei seca, instituída pela 18ª emenda à constituição americana; o povo de Odessa, o despotismo, não de um contrabandista de cachaça, mas de um autêntico cachaceiro. E, como todo cachaceiro, pusilânime quando sóbrio, mas valente quando ébrio.
         
          A escadaria de Odessa
                          
Em 1930, foi criada a OAB, cujo rito histórico não tinha nada a ver com cachaça. Isso, até 7 de dezembro último, data da consulta pública aos advogados sergipanos, realizada a fim de que fosse concretizada a lista sêxtupla com os candidatos à vaga de desembargador do Tribunal de Justiça. Engraçado. A OAB até que teve sua biografia estilhaçada por bombas. Que o diga agosto de 1980, quando radicais de extrema-direita enviaram uma carta-bomba à sede da Ordem, na avenida Marechal Câmara (RJ), para matar seu então presidente, Seabra Fagundes. Terminaram assassinando a secretária, Lyda Monteiro. A história de D. Lyda também não guarda qualquer sintonia com cachaça. Ela morreu lúcida. Especialmente, com lucidez cívica. De fato, civismo e civilidade não são ingredientes muito comuns aos cachaceiros. Cachaceiros, efetivamente, gostam mesmo é de cachaça. A história da cachaça é a história da bagaceira. Estudiosos afirmam que ela nunca gozou de muito prestígio. Seu consumo sempre foi ligado a escravos e miseráveis. Na Rússia de Nicolau II, um fraco, a cachaça, que por lá é chamada vodka, produz-se a partir de centeio. A cachaça brasileira vem da cana. O intrigante é que a cachaça, de tão associada que está à esculhambação, terminou por ver sua matéria-prima atrelada à noção de cadeia. Daí, dizer-se: “entrar em cana”. É, parece que cachaça é um troço do diabo. Quando Cristo se apresentou a Herodes, o governante estava cheio de “cana”, tal qual Nicolau II. Deu no que deu. Massacre na Rússia. Crucifixão em Jerusalém. Nicolau II também era anti-semita. Todo cachaceiro gosta de tachar os outros com algum epíteto depreciativo. Os nazistas, quase todos cachaceiros, referiam-se aos judeus, valendo-se do adjetivo “imundo”. Já outros cachaceiros se deliciam com o adjetivo “picareta”. Complicado saber qual o pior.

          
Sepulveda Pertence, vice-presidente à época do atentado à sede da OAB, 
em frente à mesa da funcionária Lyda Monteiro. Sepulveda estava no exercício da presidência no dia da explosão da carta-bomba.
                                                                                                                              
O cachaceiro Nicolau II mandou exterminar o povo de Odessa. Os cachaceiros alemães, que denominam a bebida como kirsch, prenderam os judeus em Ausch-witz-Birkenau, Bergen-Belsen, Dachau, Mauthausen, Treblinka etc. Os cachaceiros do 7 de dezembro trancaram Henri Clay e César Britto na OAB. Se havia advogados entre os cachaceiros, que fique claro desde logo: advogado cachaceiro não é advogado, é cachaceiro. O adjetivo é tão ultrajante que ofusca o profissional. Mas não ofusca a profissão. Se uma bomba não maculou a OAB, o que dizer de umas garrafas de cachaça. Se o massacre de Odessa não espezinhou a ideologia do povo russo, o que dizer de umas garrafas de cachaça. Se o nazismo não dizimou a nobreza do povo judeu, o que dizer de umas garrafas de cachaça. A cachaça só acaba com um tipo de gente: os cachaceiros. A cachaça é uma coisa tão miserável que o direito penal cunhou a expressão actio libera in causa para designar o estado de quem se põe bêbedo para delinqüir, na expectativa de não ser censurado. Pois bem, vai “em cana” do mesmo jeito. Em alguns casos, isso é até agravante, conforme já decidiu, em 2003, a 5ª Turma do TRF da 2ª Região, através de voto do desembargador federal Antônio Ivan Athié: “Independentemente de se cuidar aqui da famosa teoria da actio libera in causa, o que se verifica é um ato em que a própria bebida, em tese, pelo menos, não exclui a responsabilidade e nem o dolo, podendo até agravar”. Como se percebe, o direito também não gosta dos cachaceiros. A justiça não gosta dos cachaceiros. E por que, então, a OAB haveria de tolerar cachaceiros? E nem se diga que aquilo foi um ato de indignação. Não. Foi um ato de indignidade. O argumento de que a OAB deveria divulgar os votos não passa por uma análise primária, nem se levada a cabo por um cachaceiro.                              
  Sede da OAB sergipana
                              
Por exemplo, nas eleições para governador, Toeta teve a candidatura indeferida porque não se teria desincompatibilizado das atividades sindicais no momento certo. Candidatura indeferida, candidatura nula. Ainda assim, como a questão não tinha feito coisa julgada, ele pôde participar das eleições. Quantos votos Toeta teve? Ninguém sabe. Por quê? Porque sua candidatura era nula (TSE, RO 1092, Relator: Carlos Britto). Querem algo mais óbvio? A consulta aos advogados não atingiu o quorum. Consulta sem quorum, consulta nula. Nulo é o que não almeja seus objetivos. Como, pois, divulgar os votos de uma consulta nula? Mas ainda que a reivindicação fosse razoável, ela deveria ter vindo à tona com outra postura, e não com cachaça. A rigor, essa história de consulta não atende aos ditames da lei, nem aos ditames da sobriedade. Uma consulta que consegue ser afetada pelo hálito de um bando de cachaceiros não pode mesmo prosperar. Certo estava quem pretextou que desembargador não precisa de voto. Desembargador precisa de mérito. Eleição não mede mérito de ninguém. Pode até medir popularidade. Mas popularidade Hitler também teve na Alemanha, embora a História tenha comprovado que nunca exibiu méritos quaisquer. Há uma sentença latina que diz: “vinum saepe facit quod homo neque ‘bu’ neque ‘ba’ scit”, ou seja, “o vinho age de tal modo que o homem não sabe nem ‘bu’ nem ‘ba’”. Ora, se o cachaceiro não entende de “bu” e “ba”, quanto mais de OAB.
                
Bertolt Brecht, em Histórias do Sr. Keuner, preleciona que “o que é sábio no sábio é a postura”. Segundo Brecht, não interessa o objetivo daquele que não tem postura. Um cachaceiro não tem postura. Quando reivindica, fá-lo sem postura. Mal fica de pé, embora consiga chamar um colega de picareta. Mas haverá um outro escrutínio. E lá estarão os cachaceiros. Malgrado tudo isso, os cachaceiros se acham os melhores. E, citando novamente Brecht, um dia indagaram de um homem, que se achava o “melhor”, qual seria seu próximo passo. A resposta foi: “Tenho muito o que fazer. Preparo meu próximo erro”. É só esperar para ver.



01. Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 23 e 24 de dezembro de 2007, Caderno B, p. 11.

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