Aracaju/Se,

segunda-feira, 17 de maio de 2010

A Nova Lei de Interceptação Telefônica

A Polícia Judiciária, Alfred Hitchcock e a nova Lei de Interceptação Telefônica

Há quem, na crítica literária, projete Vinícius de Moraes de forma míope. O argumento principal está ali onde ele não seria um poeta autêntico, porquanto tenha-se envolvido com a MPB. Bobagem. Vinícius foi um poeta ímpar. Foi, ademais, um músico de raríssima beleza. Em 1973, ao lado de Toquinho, compôs Regra Três, cuja letra é matizada com uma admoestação: “tantas você fez, que ela cansou, porque você, rapaz, abusou da regra três, onde menos vale mais”. Muitos não compreendem o porquê da expressão “regra três”. Paciência. A construção é futebolística. E futebol e cinema são iguarias. Assemelham-se à Filosofia. Filosofia não é para qualquer um. Cinematografia e futebol, analogamente, exibem conteúdos que nem todas as mentes são capazes de decifrar.

            Ora, “regra três” foi uma coisa que só passou a existir a partir de 1968. É que, antes de tal data, não se permitiam substituições no futebol. Daí, a existência de um campeonato paralelo ao dos profissionais, denominado campeonato dos reservas. Com o advento da regra três, isso findou. E, às vezes, o menos (reserva) valia mais do que o titular, como preconiza a canção de Vinícius, ficando no banco tão-somente a título de estratégia. Só que Vinícius não estava pensando em futebol quando burilou o samba. Estava pensando em amantes. Amantes, de quando em vez, substituem as titulares. Às vezes, também, valem mais do que as titulares. Mas o abuso na substituição cansa. E o “rapaz”, de tanto substituir, poderá ser posto de escanteio.

            É o que está para acontecer com a Lei nº 9.296/96 (Lei das interceptações telefônicas). Ela vai ser posta de escanteio. E a culpa é da polícia judiciária, que abusou. A rigor, abuso decorre da falta de tato, da ausência de tirocínio, da pobreza de sensibilidade. Em 1954, Hitchcock demonstrou a veracidade desse ponto-de-vista com o filme “disque M para matar”, com roteiro de Frederick Knott, o qual, anos antes, escrevera peça homônima, adaptada para o cinema pelo mestre do suspense. A narrativa é arrebatadora. Ela passa pelos arroubos psicológicos experimentados pelo ex-tenista Tony Wendice. Tendo convolado núpcias com a milionária Margot Mary, interpretada pela dulcíssima Grace Kelly, Tony vive uma crise de ciúmes quando descobre que sua esposa havia mantido um affair com o escritor Mark Halliday, o qual, miseravelmente, resolveu ir para Londres, onde Wendice reside com a mulher.
       
             Sucede que Margot não queria mais nada com Mark. Tampouco Tony a amava tanto, a ponto de justificar a dimensão do ciúme que externou. Na verdade, toda a trama foi montada por uma única causa: dinheiro. Assim, Tony chantageia um amigo, Charles Swann, no sentido de que este invada sua casa, quando Margot estiver sozinha, para matá-la estrangulada. A senha? Um telefonema. Mas há um detalhe, que não pode ser desprezado. Enquanto Charles ia matar Margot, Tony, valendo-se de um álibi quase perfeito, toma whisky, por incrível que pareça, ao lado de Mark. Todavia, tudo dá errado. Margot, em legítima defesa, mata Charles com uma tesoura e, a partir de então, todo o filme se transforma num laboratório de fórmulas psicanalíticas. E Tony vai ter que escapar da arapuca que engendrou. Por quê? Porque abusou. Nada daquilo era necessário. Discou M para matar e terminou metendo-se numa cilada.

            De fato, quem disca M para matar corre o sério risco de entrar na tesoura. É o que, agora, vai acontecer com um dos mais relevantes elementos de investigação utilizados pela polícia judiciária: a interceptação telefônica. Que o diga o projeto de lei 1.443/07. Nascido na CCJ da câmara dos deputados, o projeto esquarteja a Lei nº 9.296/96. Não que alguns pontos da mudança não sejam positivos; outros, contudo, beiram a hecatombe. Exemplifique-se: antes, a interceptação poderia ser utilizada tanto durante o inquérito quanto durante o processo; agora, apenas durante o inquérito, ainda que por requerimento do MP. Antes, a interceptação era cabível para investigar qualquer crime punido com reclusão; agora, não, só caberá para um rol taxativo de crimes, a exemplo de terrorismo, tráfico de drogas, quadrilha, homicídio qualificado, latrocínio, estupro, ilícitos praticados por organizações criminosas, dentre outros. No total, a lei disseca um cardápio de dezoito crimes. Portanto, a interceptação não mais poderá ser empregada para qualquer infração, diferente daquelas que são explicitamente elencadas na futura lei. Roubo, por exemplo, não poderá mais ser objeto de interceptação. Isso é ruim.
    
Mas há pontos positivos. Com a nova lei, salvo no caso de extorsão mediante seqüestro e terrorismo, o prazo da interceptação será limitado a, no máximo, sessenta dias, improrrogáveis. Há outro, ainda melhor: as conversas entre o investigado e seu advogado, mesmo que decorrentes de interceptação, não poderão ser usadas como prova. Isso, inegavelmente, é um avanço. Afinal de contas, o advogado é um profissional cuja inviolabilidade, prevista na CF, está diretamente atrelada aos institutos da ampla defesa e do contraditório. Como, entretanto, o causídico vai exercer, na plenitude, sua liberdade profissional, correndo o risco de ver sua conversa com o cliente sendo usada contra este? Nesse aspecto, a nova lei é perfeita e atende aos reclamos da OAB. Além disso, a pirotecnia propiciada por alguns policiais mal intencionados vai acabar. Com a aprovação da nova lei, as gravações só poderão ser liberadas para jornalistas com autorização judicial e, ainda assim, em audiência pública para a qual serão convocados todos os órgãos de imprensa. Isso vai esfolar o sensacionalismo de alguns programas paleozóicos que se alimentam do escândalo e do privilégio no campo da informação.

            Há diversos outros destaques, que só a leitura de todo o projeto de lei permitirá enxergar. Contudo, na exposição de motivos do projeto, da lavra do deputado Leonardo Picciani, transcreve-se chocante excerto do jurista Renato Marcão, onde este propugna que “as polícias têm-se utilizado da interceptação telefônica de forma ilegal e, depois da exitosa prisão em flagrante, sem que a existência da escuta venha à tona, justifica-se que as diligências se iniciaram em razão de ‘denúncia anônima’”. Algo terrificante. Se o tal equipamento, denominado guardião, vai prestar-se para tamanha truculência, necessário faz-se que a OAB e o MP fiscalizem seu funcionamento, sob pena de a polícia judiciária abusar na “regra três”, pois, assim como o uso de reserva é exceção, a interceptação também deve sê-lo. O projeto de lei 1.443/07 está aí por causa dos abusos da polícia. Mas se ele não for suficiente, tal qual Grace Kelly, tesoura nela, até porque quem quer voar além dos limites acaba por perder as asas.

(Publicado no JORNAL DA CIDADE, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 2 e 3 de dezembro de 2007, Caderno B, página 11).

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