Aracaju/Se,

terça-feira, 25 de maio de 2010

A Greve de Fome de Dom Cappio

A Feiticeira de Endor, as Águas do Rio Eufrates
e a Greve de Fome de Dom Cappio


Não se chantageiam os deuses. A divindade até que sucumbe diante do diálogo; jamais, diante da chantagem. Dialogar é um mecanismo da religião; chantagear, da magia. Max Weber traça um panorama através do qual a sociologia tenta demarcar a tênue distinção entre magia e religião. A magia, consoante Weber, vale-se da chantagem para forçar os deuses a atender à imposição do mago. A religião, por outro lado, lança mão da dialética, da oração, instrumento por intermédio do qual o religioso recorre aos deuses, no sentido de ver sua súplica atendida. Enquanto o religioso pede, o feiticeiro ordena. Em seu estudo “sociologia da religião”, delineado na obra “economia e sociedade”, Max Weber explica que a evolução da magia para a religião passa pelo abandono da “coerção divina”, abrindo espaço para o “serviço divino”. O mago coage os deuses. O religioso serve aos deuses. O ritual do mago traduz-se com elementos de ameaça e de arrogância; o do religioso, com a liturgia do pedido e da humildade.

Weber sinaliza, ademais, para outro abismo, que separa a fé religiosa da prepotência mística, prelecionando que o enfrentamento lúdico dos deuses, na magia, sucumbe em face do aparecimento da “visão ético-religiosa do mundo”. O feiticeiro invoca um deus e lhe dá uma ordem, em troca de oferendas. O religioso clama por um deus, pedindo-lhe algo na esperança de ser atendido pelo ensaio da fé. Feiticeiros e magos não entendem de fé. A fé transita pelo campo do diálogo, como preconizou o messias: “pedi e vos será dado” (Mt 7,7). Intrigante. Dois dos mais proeminentes reis judeus caíram na armadilha da chantagem e da feitiçaria, enquanto que um dos piores pôde lavar sua biografia, no fim da vida, com as águas do arrependimento, da oração, da súplica e da submissão. Trata-se de Davi, Saul e Manassés, respectivamente. Davi chantageou seu deus com uma greve de fome. Saul procurou uma feiticeira, a fim de que se lhe garantisse a vitória sobre os filisteus. Manassés, preso em Babilônia, humilhou-se e venceu.



História de Davi: após ter estuprado Betsabéia, recebendo a informação de que ela estaria grávida de um filho seu, o monarca arquitetou a morte de seu esposo, Urias, o qual compunha o exército de Israel em uma violenta batalha contra os amonitas. Com o assassinato de Urias, Iahweh, deus dos hebreus, mandou que o profeta Natã lançasse uma maldição sobre o rei. Dentre os vários castigos que Davi receberia, o pior de todos seria a morte do garotinho ao qual Betsabéia daria à luz. O que fez Davi diante disso? Humilhou-se? Não. Chantageou seu deus, no sentido de dissuadi-lo de levar o menino embora. Como? Com uma greve de fome. Ficou sete dias sem nada comer, prostrado no chão, fazendo da serapilheira sua vestimenta. A chantagem de Davi, contudo, não comoveu a divindade. É que, como já se afirmou, não se chantageiam os deuses. O garoto morreu. E Davi teve o resto dos seus dias carimbado pelo diapasão da catástrofe familiar e institucional. O rei que desafia os deuses, normalmente destrói sua família e seu governo.

Com Saul não foi diferente. Abandonou a ética judaica, que repelia toda e qualquer prática de sortilégio e resolveu ir à procura de uma prognosticadora de eventos: a feiticeira de Endor. Determinou à bruxa que ela mandasse ao espírito de Samuel que subisse do vale dos mortos para lhe dar um alento acerca das batalhas que vinha per-dendo. Samuel compareceu; o alento, porém, não. A entidade enunciou a Saul que, em breve, ele lhe faria companhia. Saul caiu em desespero. O que fez? Engraçado. Recusou-se a comer. Foi necessário que a feiticeira o persuadisse a alimentar-se. Que ironia. Dias depois, Saul viu-se obrigado a praticar suicídio diante da derrota acachapante dada na batalha de Gelboé. É, parece que a trilha dos chantagistas é sempre a mesma: feitiçaria, extorsão contra os deuses, desprezo e repúdio da divindade e, finalmente, morte. Com Manassés, para quem tudo deveria ter dado errado, a história foi outra.

História de Manassés: Manassés era filho do rei Ezequias. Foi o 14º rei em Jerusalém. Fez coisas terríveis aos olhos do seu deus. Conseqüência: foi subjugado pelo governante da Assíria e levado cativo para Babilônia, onde ficou encarcerado, pagando tributos a Assurbanipal. O que fez? Greve de fome? Não. Por incrível que pareça, dialogou com seu deus. O diálogo é sempre o caminho do êxito. Quem dialoga vence; quem monologa perde. Manassés humilhou-se, orou, suplicou e foi atendido. Mas enquanto estava preso, comia normalmente. Retomando Max Weber, os feiticeiros desejam colocar os deuses no plano da subordinação, enquanto que o discurso ético dos religiosos aponta para um quadro em que o mandamento divino deve ser obedecido. O religioso busca o seu deus como refúgio; o feiticeiro busca um deus como capacho. Segundo Weber, a magia vislumbra a racionalidade dos fins. Numa palavra, o feiticeiro sempre quer um ganho, um plus. Há uma mais-valia na “conquista” dos deuses. O religioso, por outro lado, não quer capitalizar com sua fé.

Diante disso, vê-se que a ausência de discurso de dom Cappio é típica não dos religiosos, mas dos feiticeiros. Geddel Vieira Lima, em entrevista dada ao portal terra, declarou que o “religioso” não queria debater, finalizando que sua postura é antidemocrática. Tudo certo. Menos o adjetivo “religioso”. Religiosos debatem. Raymond Aron, em “etapas do pensamento sociológico”, explica que, para Weber, o religioso é um pacifista. Nessa esteira, Weber preconiza que “o pacifista ideal se recusa a tomar armas, a responder à violência com a violência”. Se, na concepção de dom Cappio, a transposição do São Francisco é um ato de violência do governo, não lhe caberia, como religioso, responder com outro ato de violência: uma greve de fome. Isso, sociologicamente, é um conjuro. Foge ao diálogo. Traz as cores de quem quer submeter os deuses. É postura de feiticeiro. A transposição do rio é um ato de estado. Certo ou errado, esse ato deve ser apoiado ou combatido pelas vias do diálogo, nunca da coerção moral.

Dom Cappio também deve ter lido Max Weber. No entanto, leu de cabeça para baixo. Weber, de fato, certa vez disse: “exagerar é a minha profissão”. Só que o exagero de Weber se materializava na intensidade vibrante de seu discurso; o de dom Cappio, na intensidade chocante de seu conjuro. O mundo de dom Cappio ora é escatológico, ora é fictício. A escatologia talvez diga respeito à fé. Bem, com sua fé ele faz o que quiser. O apocalipse (16,12) narra o episódio do sexto anjo que derramou a taça do furor de Deus nas águas do Eufrates, “e a água do rio secou, abrindo caminho aos reis do oriente”. Se dom Cappio acredita que um anjo vai derramar a taça do furor de Deus no São Francisco, paciência. Mas ele deveria argumentar com o anjo e não compeli-lo com greve de fome. Aí, dom Cappio adentrou no mundo da ficção. Uma ficção horrenda. Tão horrenda como uma greve de fome. O universo de dom Cappio concebe o futuro conforme a perspectiva ditatorial que George Orwell expôs no romance “1984”: “se você quer uma imagem do futuro, imagine uma bota prensando um rosto humano para sempre”. Dom Cappio, com sua greve de fome, quis colocar uma bota no rosto dos deuses. Por isso, perdeu.

(Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 30 e 31 de dezembro de 2007, Caderno B, p. 7.)

Um comentário:

  1. Tenho lido, em primeira mão, todos os teus artigos e além do forte conteúdo há uma marca indelével, uma tatuagem, uma assinatura: o teu estilo.
    Até que enfim... O blog.
    Parabéns.
    JJRS

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