Aracaju/Se,

sexta-feira, 14 de maio de 2010

O Fim da Prescrição Retroativa e o Sétimo Selo


Antônio Carlos Biscaia, o fim de prescrição
retroativa e o sétimo selo de Ingmar Bergman


Morrer é necessário. Morrer é inevitável. Para encarar a morte, entretanto, imprescindível é ostentar coragem. Aquela coragem que, em O Sétimo Selo, Max Von Sydow demonstrou, ao interpretar um cruzado que, no século XIV, ao retornar da guerra, além de encontrar seu país assolado pela peste negra, teve que jogar xadrez com “a indesejada das gentes”, no intuito de ludibriá-la e postergar seu fim. Mas Von Sydow perdeu o jogo. E a morte acabou por levá-lo.

O Sétimo Selo, filme do final da década de 1950, projeta uma imagem irresistível. Só há uma maneira de lidar com a morte: aceitá-la. Afinal de contas, ninguém é highlander. Bergman, esse extraordinário cineasta sueco, comprova isso através do seguinte ponto-de-vista: quem se preocupa demasiadamente em confrontar a morte, no mais das vezes morre primeiro. Por outro lado, quem não dá a mínima para ela, termina por não integrar as primícias de seu catálogo de convidados. Um dia, vai. Mas não vai logo.

Max Von Sydow gosta de bater naquilo que é paranormal. Também interpretou o padre que, em O Exorcista, digladiava com o diabo para expulsá-lo do corpo de uma garota. Mais uma vez, perdeu. E morreu. Não tivesse comprado a briga, ainda estaria celebrando missas. O Brasil também tem o seu Max Von Sydow: o deputado federal Antônio Carlos Biscaia, o homem que quer matar a morte. Não a morte, como ordinariamente vislumbrada, mas a prescrição, que, metaforicamente, aponta para a morte do direito de punir.

Biscaia não produziu um filme. Redigiu um Projeto de Lei, o de nº 1.383/2003. Com essa “obra-prima”, ele pretende dar fim à prescrição retroativa, uma criação do gênio brasileiro, instituto pouco conhecido no Direito alienígena. Mas o que vem a ser prescrição retroativa? Fácil. Para tanto, é interessante mergulhar no art. 4º do Código Penal. Tal dispositivo reza que o tempo do crime é o da ação ou da omissão, ainda que outro seja o momento do resultado.

Assim, se A esfaqueia B no dia 1º de janeiro, mas este só falece no dia 20 de fevereiro, considera-se que o homicídio foi praticado naquela data (momento da ação), e não nesta (momento do resultado). Daí, uma indagação: a partir de que instante o Estado passa a deter o direito de punir? Ora, desde quando o crime é perpetrado. Sucede que esse direito de punir também morre. Com efeito, o legislador até que tentou jogar xadrez com a morte do crime, criando as causas interruptivas da prescrição. A primeira delas é o recebimento da denúncia.

Desse modo, quando A esfaqueia B, considerando que B veio a óbito, o Estado, nos termos do art. 109 do Código Penal, terá vinte anos para punir A. Mas o processo carrega seus trâmites. Haverá um inquérito policial, presidido por um Delegado de Polícia de Carreira. Após, uma denúncia, peça através da qual o Promotor pede ao Estado que aplique uma pena, por intermédio da qual A será castigado. Conseqüentemente, quando o juiz apõe seu recebido no rosto da denúncia, está interrompida a prescrição, ou seja, aqueles vinte anos começam a correr novamente. Do zero.

Contudo, a tabela de prescrição, estampada no art. 109 do Código Penal, leva em conta as penas em abstrato, isto é, aquelas previstas no preceito secundário de cada artigo incriminador. Todavia, quando o delinqüente é condenado, deixa-se de lado a pena em abstrato, passando-se a enxergar a pena efetivamente aplicada. Por exemplo, a prescrição do crime de furto simples, cuja pena máxima alcança os quatro anos, dá-se em oito. No entanto, se o juiz condena o réu em um ano, a prescrição deixa de atentar para o máximo estatuído em abstrato, passando a ser contada em face do que realmente foi infligido (um ano). Conseqüentemente, a prescrição, consoante estabelece o art. 109, VI, do CP, incidirá em dois anos.

Tal perspectiva foi produto de construção jurisprudencial, encontrando-se emoldurada na Súmula 146 do STF, com o adendo que ela só se aplica ali onde não houver recurso da acusação, já que, nessa hipótese, não existe a possibilidade de a sanção ser majorada. Com base nisso, foi que a reforma penal de 1984 cunhou os §§ 1º e 2º do art. 110 do CP. No último, ficou patenteado que a prescrição poderia ter como marco inicial momento anterior ao do recebimento da denúncia. Isso é lógica pura. Remetendo o leitor para linhas anteriores: a partir de que instante o Estado passa a ter o direito de punir? Ora, a partir da prática do crime. Logo, é a partir daí, também, que o prazo para punir começará a correr.

Um exemplo: imagine-se que A furtou um livro em uma biblioteca no dia 15 de março de 2000. Acontece que, oferecida a denúncia, esta só foi recebida pelo juiz em 20 de agosto de 2002. Ao prolatar a sentença, o magistrado condenou A na pena mínima, vale dizer, um ano. Nesse diapasão, a punibilidade já tinha morrido. A prescrição retroativa a matou. Retroativa porque ela “retroage” a momento anterior ao recebimento da denúncia. Nada mais óbvio. Se o Estado foi uma anta para atuar, paciência! Ninguém pode ficar a vida inteira à espera da morte. A prescrição, por conseguinte, objetiva repreender o Estado desidioso, inoperante e lerdo.

Biscaia, contudo, quer pôr um fim nessa plástica arquitetura aristotélica. Biscaia joga xadrez com a morte. E parece que, dessa vez, a morte vai perder. Mas, perdendo a morte, perde toda a sociedade. Que o diga Saramago, no romance As Intermitências da Morte, onde esta resolve fazer greve e lança o caos entre os homens que, envelhecidos, doentes e agonizantes, imploram para morrer, mesmo porque morrer é necessário. Mas Biscaia, na sua ânsia demagógica de vestir a fantasia de imortal no direito de punir, quer garantir a um Estado preguiçoso a temeridade do eterno. E o Estado, que já é um colosso diante do cidadão, vai assumir a feição de titã.

Resta saber qual será a próxima jogada de Biscaia, no tabuleiro de xadrez. Queira Deus que não seja a mudança da redação do art. 4º do CP. Aquele que trata do tempo do crime. De repente, e isso não é improvável, Biscaia, cinéfilo que é, inspirado em Spielberg, quererá implantar um como que de minority report, abrindo a sucursal do pré-crime. Quando isso se der, não haverá mais prescrição. E o cidadão vai ser punido não pelo que já fez, mas pelo que iria fazer. Xeque-mate! Nesse dia, vigorarão as sábias palavras de Saramago: “não resistiremos a recordar que a morte, por si mesma, sozinha, sem qualquer ajuda externa, sempre matou muito menos que o homem”. E esse homem, hoje, tem nome: Biscaia.

• Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 18 e 19 de novembro de 2007, Caderno A, página 11.
• Publicado, no site jornalístico nenoticias.com.br a partir do dia 19 de novembro de 2008.

Um comentário:

  1. ADOREI A COMPARAÇÃO. FICA AINDA MAIS ENGRAÇADA AGORA, POIS O PROJETO DO ANTONIO BISCAIA, QUE VIROU A L. Nº 12.234/10, NÃO ACABOU COM A PRESCRIÇÃO RETROATIVA, COMO EXPRESSADO ANO SEU ART. 1º. APENAS LIMITOU SUA INCIDÊNCIA NA METADE. DEMONSTRANDO UMA IDÉIA MIRABOLANTE QUE TRAMITOU LIVREMENTE, REFLETINDO A IGNORÂNCIA DE NOSSOS PARLAMENTARES EM CONSENTIREM NESSE RETROCESSO LEGAL. UM ABRAÇO! OCEANIRA MIRANDA/PA

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