Quando o consagrado fabulista Ludwig Bechstein (1801-1860) publicou o burro que espirrava dinheiro, ele supôs que apenas as crianças acreditariam na estória. Afinal de contas, seu papel era entreter os jovens leitores. Passados quase cento e cinqüenta anos da morte do escritor, é possível ver que alguns adultos, mais burros do que o burro da fábula, acham que é possível espirrar dinheiro. Ludwig Bechstein também é conhecido pelo famoso texto “Der Rattenfaenger Von Hameln” (o caçador de ratos de Hameln), onde ilustra a biografia de uma cidadela que, após ficar livre de uma praga de ratos, por conta da ação paranormal de um mago flautista, não o recompensou segundo aquilo que ficara acordado. Conseqüentemente, o músico, irritado, acabou por enfeitiçar todas as crianças da cidade, levando-as embora para sempre.
Bechstein foi sutil. Mas o conteúdo que se esconde por trás de suas fábulas é acachapante: a visão capitalista do sistema, que arquiteta as coisas tão-somente sob o prisma do controle financeiro. Parece que, às vezes, é melhor arrancar o dedo de alguém do que privar-lhe de cinqüenta centavos que sejam. Os cidadãos de Hameln preferiram perder as suas crianças a pagar o que prometeram ao flautista, caso ele os livrasse dos ratos. Isso, historicamente, tem gerado um desconforto incrível na relação entre governos de esquerda e o proletariado, em tese responsável pelo surgimento desse núcleo de poder. É que a luta de classes teria dado corpo ao aparecimento de uma filosofia nacional-socialista, deturpada aqui e acolá.
Houve, aliás, quem chegasse a crer que a dominação do sistema por parte dos donos do poder impediria um diálogo isonômico entre estes e os trabalhadores. Isso se deu ali na década de 1920, quando alguns intelectuais de língua alemã resolveram fundar o Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt, que entrou para a História da Filosofia como A Escola de Frankfurt, cujo principal mote está consubstanciado na denominada teoria crítica. Mas o que vem a ser tal teoria? Simples. Consistente numa fusão de conceitos marxistas e freudianos, tal teoria difundiu o ponto-de-vista de acordo com o qual a sociedade de massa seria guiada pelos controladores da tecnologia, posta à disposição da defesa de uma perspectiva única e exclusivamente capitalista. Numa palavra, quem detém o capital (leia-se poder) controla o proletariado, hipnotizado pela instrumentalidade das cifras. Em síntese, para a Escola de Frankfurt, não há razão, não há dialética, não há esclarecimento. Há, apenas, o desencantamento do mundo. Manda quem pode e obedece quem tem bom senso.
Adorno e Horkheimer são os mais radicais na diagramação dessa tese. De acordo com eles, morreu a razão crítica do proletariado, ao qual, homogeneizado, massificado e sem consciência revolucionária, só restaria a indústria cultural. E a teoria crítica teria que abrir espaço para a teoria estética. Walter Benjamin arrematou tal estigma, afirmando que o proletariado poderia ser politizado apenas pela ingerência de movimentos artísticos a ele dirigidos. Parece que o proletariado apontaria para um amontoado de patetas, que ficariam o dia inteiro tomando chibatada, enquanto escutariam ou um poema de Brecht ou uma sinfonia de Mozart. Valendo-se, inclusive, da filosofia de Herbert Marcuse, o proletariado acabaria por traduzir o “homem unidimensional”, algemado e sem condições de digladiar com o sistema que, em tese, o oprime.
Sorte da sociedade sergipana, cujo governador e cujos operadores da segurança pública não acreditam nessa lengalenga. Abaixo Frankfurt! Déda e os Delegados de Polícia demonstraram que Adorno, Horkheimer e os demais membros dessa cambada de pessimistas estão totalmente superados. É lícito crer, até pelas atitudes que adota, que Déda tem como texto de cabeceira a obra Modernidade versus Pós-Modernidade, de Jurgen Habermas. Para ele, razão, verdade e democracia têm de ser enxergadas de outra maneira. Déda não é capitalista, mas, nem por isso, crê que o capitalismo crucificou a razão. De forma alguma. Habermas, como o último grande racionalista, provou que a razão crítica de Adorno cede campo para a “razão dialógica”, onde a linguagem e a argumentação preponderam. O último encontro entre o governador e os Delegados corrobora isso. Viu-se ali um governante disposto a tornar mais robustos os alicerces da liberdade comunicativa. Viu-se, ademais, uma categoria hábil, perspicaz e zelosa. Hábil porque também entende as técnicas dialógicas; perspicaz, porque assimila uma verdade que não é dela, mas intersubjetiva (mesmo porque eles não são a única categoria a reivindicar); e zelosa, porque, diferentemente do que fizeram os habitantes de Hameln, não discutem sobre ratos e dinheiro. Discutem sobre a sociedade.
Os delegados, espontaneamente, exibiram para o governador uma tela que deverá ser pintada com os tons do consenso. As cores escolhidas não são só as deles; também não são só as do governo. Quem tivesse visto o encontro gracejaria e perguntaria, tanto a Déda quanto aos delegados: “Vocês leram Habermas?”. Percebeu-se uma valorosa recondução da razão instrumental. A linguagem empregada não foi a da dominação. Também não foi a da beligerância. Vingou, a rigor, o agir comunicativo. Os delegados pretextaram que vêem o mundo pelos olhos do povo. São agentes de transformação social. Essa lenda de briga por moedas de ouro não passou de uma blasfêmia arquitetada por analfabetos políticos que querem ver o governo desestabilizado. Sucede que essa trupe não atentou para o fato de que os delegados não são analfabetos políticos. Déda, muito menos. Quanto a este, esteja-se certo de que ele leu Brecht. E, se dúvidas houve no passado, não há mais falar espaço para elas: ele também leu Habermas. E os delegados, pelo menos os que participaram do encontro, fizeram seu dever de casa. Ninguém ouse duvidar. Dentro dos códigos que os nossos delegados usam estão escondidas algumas apostilas de filosofia. Está escondido algum texto de Habermas.
Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, terça-feira, 30.10.2007, Caderno B, p.6.
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