Aracaju/Se,

domingo, 16 de maio de 2010

O Capitão Nascimento.

O Capitão Nascimento, a noite dos cristais e o labelling approach       


Novembro foi o mês da operação jaleco branco. Deflagrada pela polícia federal, ela objetivou encarcerar uma trupe de vigaristas que, há cerca de dez anos, escamoteava procedimentos licitatórios. Segundo o que restou apurado, o rombo que essa rapaziada aplicou junto aos cofres públicos alcança ali a casa dos R$625 milhões. Digno de registro, todavia, é que, com a operação jaleco branco, foi detido Antônio Honorato de Castro Neto, que não é ladrãozinho ou maconheiro. É presidente do Tribunal de Contas da Bahia.
                         
Por episódios como esse é que a sociologia jurídica aplaude a polícia federal e vaia o BOPE. Não poderia ser diferente. Os cabeças da PF entendem de armamento e tiro. Mas também assimilam elementos dialéticos, a exemplo de dogmática, etiologia, filosofia etc. Quem raciocina, dentro da polícia federal, não se engasga com teorias como a do etiquetamento (labelling approach). O capitão Nascimento é um etiquetador. Se ele já fosse nascido em novembro de 1938, perseguiria os judeus, assim como o BOPE persegue tão-somente os favelados.            
                             
Em 9 de novembro de 1938, a turma de Hitler protagonizou a denominada kristallnacht (noite dos cristais). Valendo-se de um subterfúgio frágil, pelo menos consoante um ponto-de-vista lógico (o assassinato de um diplomata alemão pelo jovem judeu Herschel Grynszpan), os nazistas determinaram que sinagogas, casas comerciais e residências de judeus fossem destruídas. Daí, o nome: noite dos cristais. É que inúmeros objetos de vidro, a exemplo de janelas, foram espatifados pela tropa de elite nazista, os militares da SA, os quais agiram à paisana, a fim de que o povo supusesse que aquele movimento traduziria uma natural retaliação social aos judeus, pelo homicídio de um compatriota (Ernst Von Rath).
O restante da História, todos já conhecem. Mais de noventa judeus mortos (só no dia 9), quase trezentas sinagogas incendiadas e, a título de tira-gosto, vinte e cinco mil homens e mulheres da comunidade judaica lançados em campos de concentração. Interessante que Hermann Göring, comandante da SA, não chorou a morte de nenhum judeu. Lastimou, sim, o quebra-quebra de objetos de valor. Para Göring a vida de um judeu não tinha significado. Para o capitão Nascimento, a vida de um favelado também não exibe nenhum. Mas para a polícia federal, o desvio de R$625 milhões representa algo maior do que a pecúnia em si mesma, principalmente ali onde isso apontará para um cenário em que várias crianças padecerão sem merenda escolar, na medida em que mesozóicos do colarinho branco enchem a pança com o caviar da improbidade.
                          
Nesse diapasão, é lícito crer que essa turma que entende demais de armamento e tiro e lê pouca filosofia não pode estar na polícia. Alexandre, o Grande, era guerreiro. Ia para o front. Nada o amedrontava. Derramou muito sangue. Mas foi educado por Aristóteles, por determinação de seu pai, Filipe da Macedônia. Alexandre não etiquetava. Enfrentava reis e soldados. Ninguém visualizou o capitão Nascimento encarando reis. Só a molecada do morro do dendê. O capitão Nascimento não teria coragem de pôr um par de algemas em Antônio Honorato de Castro Neto. Mas teve disposição para instigar seu discípulo, o soldado Matias, a dar um tiro de 12 na cara de Baiano, um traficantezinho de meia-tigela, cujo ativo mercantil, produto da venda de maconha, certamente fica anos-luz à distância dos R$625 milhões surrupiados pelo bando posto fora de circulação através da operação jaleco.
                         
Mas qual a razão disso? Elementar. O capitão Nascimento nunca se deu ao luxo de ler Los Extraños, de Howard Becker. Ora, o capitão Nascimento nunca leu Aristóteles! O capitão Nascimento, diferentemente de Alexandre, o Grande, e da polícia federal, é pequeno. Só prende pequenos. Só entra no morro do dendê. Não sabe sequer onde fica a porta do Tribunal de Contas. O capitão Nascimento não sabe o que é labelling approach. A teoria do labelling approach, ou do etiquetamento, não vê o crime. Vê aquele cuja pele fica melhor etiquetada com o epíteto de criminoso. O oportunismo histórico e social modela o criminoso. Assim, por exemplo, uma empregada doméstica que furta um pacote de manteiga é ladra. Mas a socialite que furta um anel na joalheria que normalmente freqüenta, será tratada como cleptomaníaca. Para aquela, o xadrez; para esta, um psicólogo.
                     
O capitão Nascimento enxerga apenas o “índice de marginalização do sujeito”. Desse modo, como preconiza Erving Goffman, fica bem mais fácil manipular e deteriorar a identidade de quem já possui algum estigma. Logo, a conveniência criminal indica ser mais digestivo estereotipar o favelado pobre do que, por exemplo, o presidente do Tribunal de Contas da Bahia. Lamentavelmente, o legislador brasileiro, dentro de uma concepção assumidamente etiológica, comprou essa mercadoria, vendida pelo capitão Nascimento e pelos trogloditas do BOPE, tropeçando na cognominada “criminalização primária”. Veja-se, ilustrativamente, o art. 176 do Código Penal. Ele censura apenas quem não tem dinheiro. Quem tem, perpetra mero ilícito cível, o que, na Bahia (a mesma Bahia de Antônio Honorato), a estudantada chama de “pendura”.
                          
A polícia federal, judiciária por excelência, que congrega uma excelência de mentes maturadas, malgrado “estes” e “aqueles” excessos, recheados pela tez da pirotecnia, vê no labelling approach uma deformidade. O capitão Nascimento nunca seria delegado da polícia federal. Jamais viabilizaria, em novembro, uma operação intitulada jaleco branco. Ele gosta de preto. Só prende e mata pretos. Provavelmente quebraria, em novembro, os cristais dos judeus. Em qualquer mês, crucificaria o Messias, que era judeu. O capitão Nascimento segue as regras de um sistema empesteado, enquanto a polícia federal quer dedetizá-lo. O capitão Nascimento, ao invés da farda preta, bem que poderia usar a farda da SA, que, em novembro, estilhaçou a Estrela de Davi. O capitão Nascimento, lembrando um soneto de Gregório de Matos, “é ministro de império, mero e misto, tão Pilatos no corpo e nas entranhas, que solta um Barrabás e prende um Cristo”.

(Publicado no JORNAL DA CIDADE, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 25 e 26 de novembro de 2007, Caderno B, página 10. Publicado, também, no site NE NOTÍCIAS em 26 de novembro de 2007). 

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