Aracaju/Se,

terça-feira, 18 de maio de 2010

A solidão dos moribundos

O Governo Déda,o assassinato de Júlio César e a solidão dos moribundos          


É insólito exigir ética dos mortos. Mas há aqueles que, mesmo tendo experimentado uma morte desonrosa, crêem que podem impor seu arquétipo de honra aos vivos. Quando Roma protagonizou o império, os gladiadores, antes de darem início ao embate, veneravam o pontifex maximus com a seguinte declaração: “morituri te salutant” (os que morrerão te saúdam). Isso consubstanciava um duplo significado. Em primeiro lugar, a aceitação da morte honrada, da morte vitoriosa, porquanto desprovida de angústia. Ter medo da morte, para um gladiador, apontava para a mais expressiva e ignominiosa manifestação do ultraje. Em segundo lugar, o reconhecimento da “imortalidade” do imperador. Nesse ponto, todavia, uma tolice. O professor Francisco Carlos da Fonseca, doutor em comunicação pela Federal do Rio de Janeiro, até brinca, afirmando que o ideal seria que os gladiadores dissessem: “morituri moriturum salutant” (aqueles que morrerão saúdam aquele que morrerá).

            Pelo menos, os gladiadores tinham ética. Ética que falta a alguns dos políticos hodiernos. Políticos, tal qual gladiadores, também “morrem”, não na acepção denotativa da palavra, mas na epiderme conotativa que esse termo encobre. A derrota, numa eleição, traduz o repúdio, ainda que momentâneo, da população. Esse repúdio faz com que, por certo tempo, o derrotado soçobre no esquecimento. E o esquecimento é, na política, a ante-sala da morte. A propósito disso, na mitologia grega, o deus da morte, Thánatos (θάνατος), tinha como irmão gêmeo Hipnos, o deus do sono. Assim, morrer é algo além de dormir. E alguns políticos, quando dormem, dão sossego àqueles que estão acordados, ou seja, vivos, digladiando em prol de quem os aclamou: o povo. Mas há quem morra e não durma. Essa é a melhor concepção de aperreio. O mais desagradável, contudo, é que não só se aperreiam, como acabam por aperrear os vivos. São almas penadas.

            As piores almas penadas, no entanto, são aquelas que cobram dos vivos aquilo que não fizeram antes de morrer. Essa alcatéia, que superlota o anfiteatro da demagogia, se esquece do art. 37, § 5º, da CF, onde a carta da república reza que não há prazo prescricional para a obrigação de o servidor improbo ressarcir o erário. Numa palavra, a responsabilidade do servidor público ou do agente político desonesto é ultra-ativa, vai além do seu mandato ou múnus público. Aqui é que o episódio ganha o diapasão da comédia: reclamar de quem está no poder aquilo que foi deixado por quem já expirou. Mas a culpa não é só dos defuntos. O legislador também carreia sua parcela de expiação. A rigor, foram quase noventa anos de espera pela codificação do instituto da boa-fé objetiva. Isso, o código civil de 1916 não conhecia, embora o código alemão de 1900 (bürgeliches gesetzbuch) já concebesse tal dogmática. Fazer o quê? Na Alemanha, alguns dos que se profissionalizam na política aqui no Brasil também já estariam encarcerados.

            Com efeito, boa-fé subjetiva importa um como que de espectro de consciência mal projetado. Uma visão equivocada do mundo. Um erro no tocante à avaliação. Assim, por exemplo, quem casa com uma pessoa já casada, sem conhecer tal impedimento, fá-lo de boa-fé. Do contrário, agiria de má-fé. Veja-se, pois, que boa-fé subjetiva tem oposto: má-fé. O Direito brasileiro, porém, até o advento do código civil de 2002, não tinha um parâmetro cientificamente robusto para vislumbrar a boa-fé objetiva. Mas por que “objetiva”? Elementar. Porque ela é normativa. Não depende da visão do sujeito, mas dos preceitos já positivados na ordem jurídica. Por exemplo, o laboratório que produz uma dada substância medicamentosa deve, necessariamente, pôr, na bula do produto, todos os dados que esclareçam o consumidor acerca dos mecanismos de atuação do remédio. Isso é o que a doutrina chama “dever de informação”, algo afeito à “função ativa” da boa-fé objetiva. Tal obrigação não depende da consciência do fornecedor. É algo que se extrai da própria lei. Aliás, o código civil de 2002, no art. 113, apregoa que todos os negócios jurídicos devem vir à tona consoante as regras da boa-fé objetiva.

Mas não é a “função ativa” da boa-fé objetiva que interessa na atual conjuntura. É a sua “função reativa”, vale dizer, de defesa. É que alguns políticos, pré-cambrianos por natureza, mortos pela História, mas desenterrados pela infâmia, querem condenar a atual gestão do PT em Sergipe, atribuindo-lhe responsabilidades que ela não detém. Isso lembra o assassinato de Júlio César. Interessante que a morte do “ditador” romano, no meado de março, também guarda relação com a boa-fé objetiva. Ora, foi dito alhures que a boa-fé subjetiva, ou “boa-fé crença” (gutten glauben) opõe-se à má-fé. Por outro lado, a boa-fé objetiva, ou “boa-fé lealdade” (treu und glauben) não tem antônimo. Falou-se, ademais, que a boa-fé objetiva tem funções, a exemplo da “ativa” e da “reativa”. Explicou-se um aspecto da função ativa. É chegado, portanto, o momento de dissecar a função reativa da boa-fé objetiva. Conseqüentemente, necessário faz-se compreender os institutos do venire, do dolo agit e do tu quoque.

            Venire (venire contra factum proprium) quer dizer que, no campo da boa-fé, as pessoas devem portar-se de maneira homogênea. Se o locador sempre aceitou receber o aluguel no domicílio do locatário, não lhe é dado mudar, inopinadamente, seu procedimento. Caso o fizesse, o devedor poderia, muito bem, valer-se do venire. Já o dolo agit (dolo agit qui petit quod statim redditurus est) busca castigar aquele que traça seus passos, guiado pela sede de emulação. Exemplo clássico: aquele que cobra dívida já paga. Qual a punição? Pagar em dobro o que está cobrando. Finalmente, o tu quoque. Esse instituto é, certamente, o que mais interessa ao governo petista. Tu quoque é a forma reduzida da célebre frase que Júlio César proferiu, segundos antes de morrer, caído aos pés da estátua de Pompeu: “Tu quoque, Brute, filii mei” (até tu, Bruto, meu filho?).

            Tu quoque, desse modo, quer retratar que, na ordem pátria, ninguém pode cobrar de outrem aquilo que ele mesmo não seguiu à risca, consoante leciona a cátedra de Immanuel Kant, para quem somente pode cobrar ética quem ética tem. Será que isso lembra o povo sergipano de algo? O escândalo da educação no governo anterior? R$30 milhões. Até hoje, há quem responda por improbidade. A penitenciária do Santa Maria? Queriam edificá-la pela formidável quantia de R$13 milhões. Com a licitação, quase um ano depois, o preço despencou para R$10 milhões. E o SergipTec? O governo pretérito queria levar a obra a cabo por R$55 milhões. Sucede que um respeitado empresário do setor da construção civil garantiu que ela não custaria mais do que R$35 milhões. Feita a licitação, o valor ainda desmoronou para R$22 milhões. O empréstimo de R$30 milhões da DESO? A carne que nunca foi saboreada nas escolas? E a maternidade N. S. de Lourdes? Onde a Organização Mundial da Família aplicou aqueles R$3,9 milhões? E a operação navalha? E a jaleco branco? E o diário oficial, que de “diário” só tinha o nome? Brincadeira! O pessoal ligado à administração anterior quer cobrar algo? Tu quoque?

            Enquanto isso, a atual gestão do PT reduziu os gastos com segurança dos ex-governadores, desempregando uma procissão de paraplégicos intelectuais. Acabou com a participação vitalícia de ex-vice-governadores em conselhos deliberativos. Enviou projeto de lei, cuja principal meta é dar um fim na esculhambação que é o jogo das incorporações. Remeteu projeto de emenda constitucional, vedando que monumentos recebam nome de pessoas vivas, ao contrário de quem até nome de parente colocou em galeria de arte. Ordenou auditoria na DESO etc. Mas tudo bem. Norbert Elias, em A Solidão dos Moribundos, preconiza a preponderância de uma credulidade infame na “imortalidade”. Assim, os moribundos repelem a morte como fenômeno, supondo que voltarão da tumba. Nesse sentido, que fique um recado para os mortos: se houver ressurreição, eles terão que aguardar, no mínimo, mais sete anos. Quanto ao atual governo, quando escutar cobranças de “além-túmulo”, sabendo de onde elas vêm, basta responder: Tu quoque? Ou, se desejar uma linguagem mais poética, é apropriado recitar, para os vencidos, um trecho daquele belo soneto de Augusto dos Anjos (vozes da morte): “Ah! Esta noite é a noite dos vencidos! E a podridão, meu velho! E essa futura ultrafatalidade de ossatura a que nos acharemos reduzidos!”



(Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 9 e 10 de dezembro de 2007, Caderno B, p. 9).

5 comentários:

  1. não convém que um conselheiro do tribunal de contas fique fazendo elogios ao governador do estado

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  2. Ao prezado anônimo,
    Embora pertinente, pondero ao respeitável comentário de que este artigo foi publicado em 9 de dezembro de 2007, no Jornal da Cidade, como registrado no rodapé do artigo acima.Portanto, muito antes de ser investido no cargo de Conselheiro, que se deu em maio de 2009.

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  3. Prezado Clóvis...
    Que alegria, que blog bem elaborado, bem redigido, melhor ainda quando você aborda música e cinema. Quanto ao filme "Disque M para matar" 54, que tem como protagonista Ray Milland, um grande ator premiado com o oscar em 45 com o filme "Farrapo Humano" (The Lost Weekend) - um dos grandes clássicos "hitchoquianos" com roteiro de Knott é uma demonstração cabal de grande cinéfilo. Quanto a música "Regra Três" - 1972 - de Vinícius e Toquinho é realmente uma grande página da MPB.
    É um blog mesclado de cultura, continue escrevendo.
    Um abraço.

    LUDWIG OLIVEIRA.

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  4. Caro, Clóvis. Parabéns pela iniciativa de editar um blog. Este é um exercício muito estimulante. Aproveito para alertá-lo que se acostume com estes anônimos, que se aproveitam desta condição para levantar das tumbas morais para dar lições ou te denegrir. Mas você, como figura pública certamente sabe bem disso.

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  5. Ler textos redigidos assim nos inspiram a superar a mediocridade nos nossos escritos.

    Abraço,

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